A máscara de cada dia
Dias atrás o país foi chacoalhado pela notícia de que uma criança de dez anos havia sido estuprada durante anos pelo seu tio e agora estaria grávida. A partir daí, travou-se na mídia uma batalha jurídica, ideológica e conceitual em face da autorização para a realização do aborto. Grupos a favor e contra ao aborto se mobilizaram. A imagem e dados da criança foram criminosamente expostos e amplamente divulgados. Mesmo com a determinação judicial o aborto não foi realizado no estado de origem da criança, foi necessário viajar a outro estado para realizar o procedimento.
O presente artigo não busca defender ou criminalizar o procedimento médico realizado, tampouco o foco será discutir as possibilidades jurídicas de interrupção da gravidez sob o prisma jurídico - quando a gravidez representa risco de vida para a gestante; quando a gravidez é o resultado de um estupro e quando o feto for anencefálico, ou seja, não possuir cérebro (decisão do STF) - ou mesmo as teorias que tentam definir em que momento inicia a vida – teoria concepcionista: o marco inicial da vida humana é a concepção, ou seja, o momento em que o gameta masculino se funde com o gameta feminino, formando o zigoto; teoria da nidação: é a fixação do produto da concepção no útero materno, que ocorre entre o 7º e o 12º dia após a fecundação, a teoria do desenvolvimento do sistema nervoso central – a vida humana inicia com a formação do cérebro -, ou quando respira pela primeira vez -, ou ainda, como cada uma das principais religiões do mundo veem a questão. A argumentação buscará apresentar pontuações de caráter psicológico para falas, ações e posicionamentos emanados sobre o assunto. Importante frisar que se trata de um exercício teórico e em nenhum momento será buscado analisar diretamente quem expressou seu posicionamento.
Mesmo parecendo óbvio que a gravidez de uma criança de 10 anos possa trazer sérios riscos a sua vida, muitos defenderam o contrário. Os médicos e a própria criança foram chamados de assassinos por pessoas intituladas religiosas, cristãs, “pessoas de fé”, e por que isso?
O homem desde o início das Eras, buscou no culto a alguma Divindade (Deus), a resposta aos fenômenos que não compreendia, isso se mostrou essencial para evolução e sobrevivência da espécie, pois ao se deparar com algo que não conseguia explicar atribuía à divindade, e assim, tornava possível a relação com o fenômeno. Nós somos seres sociais moldados de acordo com a nossa cultura e sociedade, desta maneira, o sistema machista e patriarcal em que vivemos, reproduz nas relações e representações sociais as suas concepções, assim, por ser mulher (a mãe) seu desejo e saúde são deixados em segundo plano.
A igreja católica tem como termo de início de vida, a concepção, assim, não aceita o aborto em hipótese alguma, há religiões mais flexíveis, que levam em consideração a condição da mãe.
Numa abordagem psicológica, ao adotar uma religião e seus preceitos, é preciso segui-los e ratificá-los aos olhos dos demais, convencendo a si mesmo que aquele dogma é o adequado, ainda que as próprias atitudes sejam incompatíveis com a realidade ou simplesmente uma forma de narcisismo.
Em TOTEM e TABU, Freud descreve os limites da culpa e da devoção. Minha devoção é com o ente simbólico que representa aquilo que eu acredito e reverencio, o Totem – um objeto de culto e adoração que demarca posições no grupo e entre os grupos (a organização totêmica impõe a lei a que todos devem ser submeter), e para tal preciso desconstruir/aniquilar simbolicamente o outro como forma de oferenda, demonstrando toda a minha fé, devoção e entrega; o Tabu representa qualquer comportamento inaceitável, pois vai de encontro às leis e aos valores morais do grupo, ele advém do Totem.
Desta maneira, essas pessoas não viram a criança como vítima de um ato ignóbil e brutal como um estupro, ao contrário, ela foi desumanizada psicologicamente, culpabilizada por muitos, para que no contexto fático, só existisse na equação o aborto, sem necessidade de avaliar o ocorrido, para tanto, a criança foi coisificada e marginalizada, sendo necessário retirar dela a sua identidade como ser humano, pessoa e mulher, por isso a importância de dar uma pecha a ela, uma marca, um tipo de letra escarlate, no caso, chamando-a de assassina, para justificar a sua condenação mantendo uma ideia de senso de justiça, correção e verdade.
Isso é importante para que o crente (no sentido de crer) não sofra com suas ações, não seja julgado pelos demais, assim como não entre em conflito com o seu Superego – autoridade, leis, valores - desta forma, não podendo, assim, nutrir sentimentos de empatia, compaixão e humanidade com o coisificado, é uma maneira de se proteger psiquicamente, afinal, a criança, no caso, tornou-se um ser inanimado e repugnante, não sendo merecedor dos melhores, mais puros e virtuosos sentimentos.
As religiões só funcionam porque alguém crê e segue seus preceitos sem discutir, quando ocorre a conversão, a “xícara” deve ser esvaziada e os novos conceitos precisam ser introduzidos sem oposição.
Três comentários que tiveram grande repercussão nas mídias sociais podem exemplificar como o ser humano pode vivenciar a percepção de um acontecimento e a depender do grau de dor, desorganização ou constrangimento que suportaram, gerem ou geraram, para evitar tal desprazer, se deixa de registar percepções externas, se busca deformar ou suprimir a realidade.
Uma professora do interior de São Paulo afirmou o seguinte: “...não sofreu nenhum tipo de violência porque já tinha vida sexual há quatro anos com esse homem. Deve ter sido bem paga”. E ainda questiona: “...crianças se defendem chorando pra mãe, esta menina nunca chorou por quê?.”
Um posicionamento como esse e a necessidade de expô-lo pode sugerir uma busca de validação do comportamento do agressor, de colocá-lo como normal objetivando ratificar comportamentos anteriores parecidos, seja de abusos sexuais, psicológicos ou físicos já vivenciados. Por vezes, a pessoa não possui uma estrutura egoica suficientemente constituída para suportar a realidade e, assim, busca cindir, suprimir ou dissimular a percepção do perigo interno em razão dos perigos reais ou imaginários do exterior, e a depender do mecanismo de defesa utilizado, neste caso poderia ser a Racionalização, precisa apresentar uma argumentação plausível para o ocorrido a fim de “se convencer” que aquilo é normal, como seriam todas as coisas indesejáveis que já tenham acontecido, dando outro significado ao contexto justificando os estados “deformados” da consciência.
Em outro comentário, um Padre declarou que a criança compactuou com o estupro “...Por quatro anos não disse nada. Claro que estava gostando. Ela compactuou com tudo e agora é menina inocente. Gosta de dar, então que assuma as consequências”. Uma fala como esta, em tese, pode significar mais que uma opinião, poderia soar como uma justificativa para um ato ou desejo, sempre atrelado a um pudor excessivo em que repudio o que mais me atrai. O discurso procura desconstituir os valores mais básicos que regem a Humanidade, há um Recalcamento da realidade suprimindo a percepção do que está acontecendo, atuando como o mais radical dos mecanismos de defesa. Também há um outro elemento, o Ego procura afastar um desejo e para isso o indivíduo adota uma atitude oposta, trata-se de uma Formação Reativa, buscando apresentar conscientemente um discurso crível que o valide para se sentir livre, liberto, afastado desse ato, “sem pecados”, afinal o pecador é o outro, ela é que quis, que procurou por isso, dessa forma o ato do agressor perde potência e o interlocutor não perde a sua pureza, continuando a seguir a sua religião, com total deformação da realidade. Eu ataco o que me atrai e busco desqualifica-lo para justificar as minhas fraquezas e possíveis “deslizes”.
Como um ato sexual com uma criança está intimamente ligado ao ID – agir por instinto sem limites e ou amarras sociais -, subjugando o SuperEgo – as normas a que estamos atrelados -, faz-se necessário um discurso que desconstrua a narrativa do que realmente ocorreu e, por conseguinte, os próprios padrões morais a que estamos afetos.
Outro Padre afirmou que o aborto realizado se tratava de um crime hediondo, mas o fato é que não deveria discutir se o ato era pecado ou não, e sim, em pleno 2020, o gênero feminino ainda ser relegado a segundo plano e a vida da criança ser posta em risco sob um argumento falacioso. Muitos que defendiam a realização do aborto o fizeram calcados na indignação pela tenra idade da criança e não pela necessidade/direito efetivo dela de realizar o ato.
Várias pessoas se manifestaram afirmando que não seriam mais cristãs porque os “cristãos” não apoiaram a realização do aborto nessas condições. Na verdade, foram pessoas que realizaram os atos e se apossaram da retórica e não a crença ou a fé, propriamente ditas, cada um molda a sua fé e interpretação de acordo com as suas necessidades, exemplo é a crença na prosperidade de um lado e voto de pobreza de outro, ambas as teses professam sua fé ao mesmo Deus, o que difere é o interesse de quem professa.
Somos seres moldados pela história de nossos ancestrais e pela nossa. Assim as dores, cicatrizes e deformações da nossa realidade são necessárias para evitarmos a dor, a culpa e o desprazer. Ao final, sempre seremos uma caricatura de nós mesmos, representando um ato a depender da situação que queiramos esconder.
* Rodrigo de Souza - Mestre em Psicologia – Saúde e Processos Psicossociais
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