Rondônia, 24 de novembro de 2024
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Cegueira moral: patriotismo às avessas

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Luiz Fredson França

Na obra Cegueira Moral: perda da sensibilidade na modernidade líquida (2014), Leonidas Donskis e Zygmunt Bauman dialogam a respeito da possibilidade de revermos valores e nossa condição humana diante da insensibilidade da dor e sofrimento do Outro, da naturalização da violência, do avanço tecnológico, das redes sociais etc. percebidos na passagem de uma modernidade “sólida” para “líquida”.

Nesse profícuo debate filosófico, concordam que a cegueira moral se apresenta como um comportamento “empedernido, desumano e implacável” que certamente “leva à perda da sensibilidade” diante da alienação do homem consigo mesmo. A “insensibilidade” é uma metáfora para o funcionamento anormal de alguns órgãos dos sentidos humanos (visão, audição, olfato, tato), resultando na incapacidade de perceber estímulos do mundo sensível, uma evidente patologia social.

Frente a atual convulsão social que a todos enlaça, em menor ou maior intensidade, dois acontecimentos ocorridos em Porto Velho estimularam a produção deste texto opinativo. Não significa que anteriormente estava insensível frente à violência e criminalidade em nossa cidade, não. Os fatos narrados a seguir apenas têm o condão de ponto de partida ou suporte para uma rasa reflexão sobre cegueira moral.

O primeiro caso a ser considerado diz respeito ao espancamento de um homem em 11/11. Segundo o que foi ventilado, a vítima teria sido agredida por uma turba insatisfeita com o resultado do último pleito eleitoral, em especial para Presidente da República. Acampados desde o dia 2/11 defronte a uma Organização Militar, este tipo de agrupamento se assemelha a outros que pululam pelo estado e país.

Conforme matéria veiculada a agressão coletiva, por motivo não conhecido, teria sido acompanhada por olhares de civis e militares, mas que não se sentiram à vontade para agir eficazmente na contenção de ilícitos penais como lesão corporal acompanhado de injúria em concurso de pessoas praticado em via pública. Nas imagens divulgadas é possível ver indivíduos usando a bandeira nacional como manto e outros vestidos com camisa da seleção brasileira pisoteando e arremessando a bicicleta da vítima diversas vezes contra o solo, configurando dano qualificado ao patrimônio alheio. 

Aparentemente a avariada “magrela vermelha” era a única peça que irritava de morte os ofensores, já que o ofendido também trajava camisa canarinho, aquela mesma que viria a ser símbolo da seleção na Copa de 1954 e agora, justo agora, uniforme dos patriotas às avessas.

O segundo fato que trago é o ataque a tiros contra a sede de um jornal eletrônico ocorrido na madrugada do dia 12/11. Esse covarde ato, flagrado por câmeras de segurança, consistiu no crime de disparo de arma de fogo, além do crime de dano qualificado. Pelo menos 20 tiros de pistola 9mm foram freneticamente disparados contra a “fachada vermelha” do estabelecimento jornalístico, segundo os policiais que atenderam a ocorrência.

Os eventos dramáticos expostos guardam conexão. Além da visível indiferença com o Outro e neurose com a cor vermelha, as ações violentas estão tipificadas em nosso ordenamento jurídico, caracterizando-se como condutas criminosas que atentam contra a paz social. A principal pauta dos patriotas às avessas - retorno do AI-5 - afronta o Estado democrático de Direito. Sem maiores malabarismos, devem ser considerados atos antidemocráticos à luz da Constituição Federal.

A flagrante cegueira moral que tomou conta dessa turba antidemocrática deve ser objeto de repúdio e não de galhofa, por mais inevitável que seja. Do contrário, estaremos ajudando a fomentar um falso antagonismo que ajuda a esconder a realidade da crise e suas causas mais profundas.

Na peça Cabeças pontudas e cabeças redondas, escrita entre 1932 e 1935, Bertold Brecht narra que no fictício reino de Jahoo, a divisão da sociedade pelo “homem providencial” foi essencial para a instalação de um regime totalitário por parte dos cabeças redondas, acabando por prender, torturar e assassinar os cabeças pontudas. A partir daí, o pensamento coeso da nação se deu por semântica: passaram a chamar nazismo de democracia; o esbulho dos despossuídos em desenvolvimento pleno; a impostura transformou-se em cultura; a verdade passou a ser mentira e a mentira legitimada como verdade, conta o historiador Nelson Werneck Sodré (1984).

Logo nas primeiras páginas de Ensaio sobre a cegueira (1995), o português José Saramago dispara: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”. 

(*) Luiz Fredson França é mestre em Sociologia e especialista em Segurança Pública e Direitos Humanos

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