Ignorância ancestral
Aristóteles concebeu as relações entre lei, justiça e razão prática há mais de vinte séculos. Ainda assim, seu pensamento é capaz de iluminar o pensamento contemporâneo, por entender a noção de justiça antes como um atributo das relações entre indivíduos do que como produto da razão humana sancionado pela vontade soberana do legislador como solução pertinente para todos os casos. Não fosse assim, bastaria ao julgador pronunciar seu enunciado frente a um caso concreto para transferir, mecanicamente, a norma geral para o caso particular. O pensamento aristotélico rompe, portanto, os laços entre lei e justiça e, nele, a noção de razão prática não encontra espaço na determinação da melhor decisão dentre as possibilidades abertas pela lei. Passa então ao arbítrio do juiz, a decisão estabelecida pelo convencimento surgido do contraditório. E indica que a evolução das relações entre indivíduos literalmente exigem debate e aprimoramento dos preceitos legais.
Luiz Flávio Gomes, eu seu monumental no artigo “Não somos ignorantes por acaso”, de 2015, diz que nossa ignorância é planejada, programada, incentivada e até comemorada pelas bandas podres das elites que dominam extrativamente o país. Ele lembra com tristeza que três quartos da população brasileira são de analfabetos funcionais. Mais de 10 milhões são analfabetos absolutos. E assevera que a ignorância do brasileiro decorre de uma peste original: o extrativismo. As nações extrativistas não contam com instituições econômicas e políticas abertas, inclusivas. Ao contrário, suas instituições são perversas, não inclusivas, mas extrativas. Tudo isso para concluir: “A reforma política em andamento constitui um nefasto exemplo desse extrativismo”.
O que terá mudado desde então? Nada. Exatamente em busca de uma reversão desse cenário desalentador o presidente nacional da OAB, Cláudio Lamachia, acaba de publicar um elucidativo artigo em defesa de uma reforma política efetiva: “Enquanto a sociedade clama por regras capazes de aprimorar a democracia e recrudescer o combate à corrupção, boa parte de seus representantes protagoniza um verdadeiro teatro, fingindo empenho e arrastando a discussão, sem chegar a nenhuma mudança transformadora no sistema político”. O Congresso brasileiro já acumulou, segundo ele, elevadíssima carga horária de debates e votações sobre os temas da reforma política. Os partidos já têm pleno conhecimento dos anseios do eleitorado e sabem, mesmo que finjam ignorar, que a péssima reputação de que desfrutam encontra fundamento na realidade.
É preciso pragmatismo. Após longa análise jurídica realizada nos últimos anos, a OAB está engajada em pontos práticos e efetivos da reforma política: acabar com as coligações proporcionais, adotar a cláusula de desempenho, tipificar o crime de caixa dois e proteger os avanços obtidos nos últimos anos, como a Lei da Ficha Limpa e a proibição de doações privadas para partidos e candidatos.
É claro que muitos políticos abominam tal perspectiva que, sem dúvida, haverá de resultar em maiores dificuldades para a reeleição. Por isso mesmo a tese do abominável voto em lista cala tão fundo no coração dos caciques partidários, pois tira deles a obrigatoriedade de contato direto com o eleitor, substituído pelo controle do partido. E perpetua, para o eleitor, a ignorância assim absoluta sobre em quem terá votado. Mas das eleições deste ano restou clara e sobejamente demonstrado que a população não mais suporta tais expedientes. Que a aquisição, no espúrio mercado negro do oportunismo, de inúmeras legendas nanicas e preciosos segundos no horário eleitoral não é mais convertida em votos. Foi inaugurada uma nova realidade eleitoral – surpreendente para aqueles que somente observam as ruas apenas pelas vidraças escurecidas dos luxuosos gabinetes – que obriga à renúncia aos anéis. E esse quadro pode facilitar a aprovação de uma reforma política mais efetiva.
O momento pode ser igualmente apropriado para a discussão do foro privilegiado, tema igualmente abordado em consistente argumentação pelo presidente Cláudio Lamachia, em outro artigo. Não se trata de mera exclusão como preconizam alguns raciocínios simplórios e apressados. Pois que, embora em desacordo com as aspirações da Constituição de 1988, o instituto do “Foro especial por prerrogativa de função” carrega circunstâncias que recomendam sua manutenção, pois que “é de interesse da coletividade que alguns poucos ocupantes de cargos-chave na República estejam plenamente protegidos contra as variações de humor de seus adversários políticos e dos agentes econômicos”. Mas está claro ser necessária e urgente sua reavaliação e aprimoramento, já que sobrecarrega o SFT e emoldura com festejada impunidade de notórias personalidades de nosso quadro político. Em função disso o Conselho Pleno da OAB está estudando uma proposta de reforma constitucional destinada a corrigir suas distorções.
O autor é presidente da OAB Rondônia
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