Lockdown: ser contra ou a favor?
Em português, lockdown pode ser traduzido como bloqueio total ou confinamento. Trata-se de um protocolo de isolamento que impede o movimento de pessoas ou mercadorias. Normalmente, é associado às estratégias que visam a proteção de indivíduos ou de patrimônios. Desde o ano passado, este termo se tornou comum no noticiário, das discussões científicas e nas conversas em casa.
Por conta da pandemia de covid-19 e dos diferentes pontos de vista sobre as estratégias para seu enfrentamento, de repente, o mundo se dividiu em duas grandes torcidas. De um lado, os que entendem que o lockdown é medida fundamental para contornar a crise sanitária; do outro, os que enxergam nele uma atitude midiática, de resultados duvidosos e com efeitos colaterais terríveis para a economia e a população.
Realmente, esse tema está longe de ser consenso. Experiências se acumulam, com respostas dispares após a adoção, ou não, do lockdown em países, estados ou cidades. No entanto, cabe a cada um de nós refletir sobre os fatos e buscar uma posição diante do assunto. Lembro que estar consciente e esclarecido é condição essencial nos dias atuais.
Para nos ajudar nessa reflexão, tomo como ponto de partida dois relatos. O primeiro é da Fundação Getúlio Vargas, que organizou um painel que monitora as ações adotadas pelos 24 países mais afetados pela pandemia. De acordo com o trabalho, 20 deles adotaram lockdown e três o isolamento vertical para frear os novos casos da doença.
Os países que adotaram lockdown foram África do Sul, Alemanha, Argentina, Austrália, Canadá, China, Colômbia, Espanha, Estados Unidos, França, Índia, Irã, Israel, Itália, Líbano, México, Nova Zelândia, Reino Unido, Rússia e Singapura. Os que fizeram isolamento vertical são Coreia do Sul, Suécia e Turquia. O 24º país da lista, o Japão, recomendou isolamento, mas sem ato normativo e, portanto, não entrou em nenhuma destas classificações.
Após analisar os dados epidemiológicos dessas nações, percebe-se que os efeitos de uma medida radical contra a circulação de pessoas e a propagação do vírus não é meio 100% eficaz para frear o avanço do coronavírus. Ou seja, as restrições, por mais duras que sejam, não impedem contaminação, adoecimento e óbitos.
O outro lado da moeda vem de três nações do Norte da Europa: Finlândia, Noruega e Dinamarca. Segundo análise da CNN, com base em informações das Universidades de Oxford e Johns Hopkins, apesar desses países terem implementado medidas com restrições leves, muito distantes do rigor de um lockdown, até o fim de 2020 eles mantiveram suas taxas de mortalidade diária abaixo de um por milhão, o que indica controle sobre a evolução da pandemia.
Na avaliação dos especialistas, o êxito dessas nações reside em sua capacidade de oferecer rapidamente às suas populações acesso a teste de diagnóstico e ao rastreamento de contato, bem como de licença médica remunerada para ajudar a manter os surtos localizados. Evidentemente, fala-se de locais onde fatores culturais, políticos, sociais e econômicos estão anos-luz da realidade de países onde impera a desigualdade. Contudo, se tais resultados foram percebidos, não podem ser ignorados.
Como se vê, há argumentos de ambos os lados, o que exige das autoridades, sobretudo, a maturidade de tomar uma decisão consciente do que sua escolha trará para o conjunto da população. A proteção da vida e da saúde deve ser o norte máximo das estratégias adotadas, porém, não se pode ignorar o impacto que as restrições trarão.
Um dado que serve de alerta para quem tem o poder da caneta é levantamento do Ministério da Cidadania que dá conta de 39,9 milhões de pessoas vivendo na extrema pobreza no Brasil. São mais de 14 milhões de família com renda per capita de até R$ 89. Esses números, que aumentaram nos últimos meses, mostram que em meio à pandemia as palavras fome e miséria voltam a assombrar os brasileiros mais pobres.
Assim, o coronavírus assume seu lugar como vértice de uma tempestade perfeita que coloca em risco a segurança alimentar dos grupos mais vulneráveis, os primeiros a sofrer com o impacto da inflação alta, desemprego e ausência do auxílio emergencial em nível adequado. Esperamos ficar livres de más escolhas, que podem incluir a adoção de um lockdown, acelerando o processo que devolverá ao Brasil seu lugar no mapa da fome no mundo.
* José Hiran da Silva Gallo é Diretor-Tesoureiro do Conselho Federal de Medicina (CFM), Conselheiro do Cremero e Doutor e pós-doutor em bioética
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