O direito à saúde e o déficit de profissionais de Enfermagem nos hospitais públicos: Uma análise das decisões do Poder Judiciário de Rondônia
Lillian Sampaio Ramos1 (https://orcid.org/0009-0004-2678-2343)
Descritores
Direito à Saúde; Profissionais de Enfermagem; Hospitais Públicos; Decisões Judiciais
Descriptors
Right to Health; Nurse Practitioners; Hospitals, Public; Judicial Decisions
Descriptores
Derecho a la Salud; Enfermeras Practicantes; Hospitales Públicos; Decisiones Judiciales
Submetido
06 de março de 2023
Aceito
03 de abril de 2023
1 Conselho Regional de Enfermagem de Rondônia, Ji-Paraná, RO, Brasil.
Conflitos de interesse: manuscrito extraído do trabalho de conclusõ de curso “O direito à saúde e o déficit de profissionais de enfermagem nos hospitais públicos: uma análise das decisões do poder judiciário de Rondônia”, defendido em 2022, no Curso de Graduação em Direito da Universidade Federal de Rondônia – UNIR.
Autor Correspondente
Lillian Sampaio Ramos
E-mail: lilliansampr@gmail.com
Editor Associado (Avaliação pelos pares):
Luciano Garcia Lourenção (https://orcid.org/0000-0002-1240-4702)
Escola de Enfermagem, Universidade Federal do Rio Grande. Rio Grande, RS, Brasil
Como citar:
Ramos LS. O direito à saúde e o déficit de profissionais de enfermagem nos hospitais públicos: uma análise das decisões do Poder Judiciário de Rondônia. Enferm Foco. 2023;14:e-202341
RESUMO
Objetivo: Analisar as decisões exaradas pelo Poder Judiciário de Rondônia, referente aos pedidos de provisão de profissionais de enfermagem para os hospitais públicos, com vistas a identificar qual tem sido a fundamentação predominante na litigância.
Métodos: O procedimento adotado foi a análise documental indireta. Procurou-se explorar a análise sob uma abordagem quali-quantitativa. O recorte documental deteve-se na atuação do TRF1 Rondônia, quanto à 26 decisões, referentes a 23 processos judiciais.
Resultados: Evidenciou-se que os pedidos de provisão de profissionais de enfermagem foram todos denegados na Seção Judiciária da capital do estado, enquanto foram deferidos nas Subseções do interior. Contudo, para o suprimento de um numerário específico de enfermeiros e/ou técnicos de enfermagem, foi indeferido em todos os juízos do TRF1. Prevaleceu o provimento do pedido de provisão de enfermeiros, fundamentado no princípio da legalidade.
Conclusão: Não há um perfil decisório predominante no TRF1, haja vista ser todas as decisões de primeira instância, inexistindo decisões de mérito prolatadas pelo Tribunal em segunda instância. Dessa forma, cada juízo mantém seu próprio tracejado cognitivo jurisdicional, inexistindo uma uniformização para decisões sobre a mesma matéria. Prevaleceu o provimento do pedido de provisão de enfermeiros, fundamentado no princípio da legalidade.
ABSTRACT
Objective: To analyze the decisions issued by the Judiciary of Rondônia regarding requests for the provision of nursing professionals to public hospitals, in order to identify the predominant grounds in litigation.
Methods: The procedure adopted was indirect documentary analysis. We sought to explore the analysis from a qualitative-quantitative approach. The documentary cut focused on the performance of TRF1 Rondônia, regarding 26 decisions related to 23 judicial processes.
Results: It was evidenced that requests for the provision of nursing professionals were all denied in the Judicial Section of the state capital, while they were granted in the Subsections of the interior. However, for the supply of a specific number of nurses and/or nursing technicians, it was denied in all the courts of TRF1. The provision of the request for nurses prevailed, based on the principle of legality.
Conclusion: There is no predominant decision-making profile in TRF1, since all decisions are at the first instance, with no merit decisions made by the Court at the second instance. Thus, each judge maintains their own jurisdictional cognitive tracing, without there being a uniformity for decisions on the same subject. The provision of the request for nurses prevailed, based on the principle of legality.
RESUMEN
Objetivo: Analizar las decisiones emitidas por el Poder Judicial de Rondônia, relativas a las solicitudes de provisión de profesionales de enfermería para los hospitales públicos, con el fin de identificar cuál ha sido la fundamentación predominante en la litigación.
Métodos: El procedimiento adoptado fue el análisis documental indirecto. Se buscó explorar el análisis desde un enfoque cualitativo-cuantitativo. El recorte documental se centró en la actuación del TRF1 Rondônia, en relación con 26 decisiones relativas a 23 procesos judiciales.
Resultados: Se evidenció que todas las solicitudes de provisión de profesionales de enfermería fueron denegadas en la Sección Judicial de la capital del estado, mientras que fueron concedidas en las Subsecciones del interior. Sin embargo, para el suministro de un número específico de enfermeros y/o técnicos de enfermería, se denegó en todos los juzgados del TRF1. Prevaleció la provisión de la solicitud de enfermeros, fundamentada en el principio de legalidad.
Conclusión: No hay un perfil decisivo predominante en el TRF1, ya que todas las decisiones son de primera instancia, no existiendo decisiones de mérito pronunciadas por el Tribunal en segunda instancia. De esta manera, cada juez mantiene su propio trazado cognitivo jurisdiccional, sin haber una uniformidad para las decisiones sobre la misma materia. Prevaleció la provisión de la solicitud de enfermeros, fundamentada en el principio de legalidad.
INTRODUÇÃO
A saúde é direito fundamental social, a ser implementado mediante políticas públicas, conforme previsto no art. 6º da Carta Magna. É nesse encadeamento que o Sistema Único de Saúde foi criado e inserido no ordenamento jurídico brasileiro, reconhecendo e assegurando o acesso aos serviços de saúde em todo território nacional, de modo integral, equânime e gratuito, a toda a população.
A saúde pública brasileira sobrevive em um cenário estabelecido entre o dever satisfativo do estado e a execução de políticas públicas deficientes. A insuficiência de recursos humanos para o desenvolvimento de uma saúde irrestrita e segura, repercute em riscos de novos agravos ou mortes, os quais poderiam ser evitados. Esse cenário de escassez de profissionais produz reflexos que afetam o núcleo de condições mínimas para a dignidade do indivíduo.(1) Nessa senda, sob a perspectiva da prestação assistencial à saúde, no âmbito hospitalar, é cediço que a enfermagem é a profissão que está ininterruptamente assistindo ao paciente, monitorando sua saúde e desenvolvendo os cuidados elementares à manutenção da sua vida.
No ano de 2020, o Ministério da Saúde publicou um relatório sobre congestão e superlotação dos serviços hospitalares de urgências revelando que o cenário de insuficiência de leitos é um problema crônico, de ordem mundial, que se manifesta em razão de uma gestão insuficiente de processos assistenciais. Consequentemente, os profissionais de saúde deparam-se com limitações em oferecer uma assistência de qualidade, ocorrendo uma prestação de cuidados morosa, que ultrapassa o tempo necessário para a assistência.(2)
O Tribunal de Contas da União, em seu relatório Sistêmico de Fiscalização da Saúde, expôs que a principal causa da indisponibilidade de leitos era o quantitativo insuficiente de profissionais de saúde, dos quais destaca-se os técnicos de enfermagem e os enfermeiros. O relatório revela que em razão do déficit de profissionais tem ocorrido o bloqueio de leitos, inclusive de serviços especializados em alta complexidade em regiões de baixa oferta. A condição é demonstrada com o caso do bloqueio de oito leitos de UTI no estado do Acre, por insuficiência de técnicos de Enfermagem.(3)
No estado de Rondônia, no ano de 2011, em razão da acentuada insuficiência de profissionais de saúde, o Governo do Estado decretou, por meio do Decreto nº 15.640/2011, estado de calamidade pública nos serviços hospitalares públicos do estado, alegando os graves riscos para a preservação da vida humana.(4)
Neste contexto, ante a ineficiência de políticas públicas que garantam a todos os indivíduos os direitos fundamentais de acesso à saúde, e um tratamento seguro, que não fira a dignidade da pessoa humana, o Conselho Regional de Enfermagem (Coren-RO), tem impetrado ações civis públicas, na busca pela intervenção do Poder Judiciário nas políticas públicas do Poder Executivo, com vistas a prover o quantitativo suficiente de profissionais de enfermagem para uma assistência de saúde integral e segura.
Todavia, nessa temática insurge uma profusão de questionamentos, haja vista a complexidade do assunto, ante a atual vertente do ativismo judiciário frente ao princípio federativo da segregação de poderes. Entrementes, diante da principiologia constitucional brasileira, pela qual, revela-se no confronto, uma possível lesão à dignidade da pessoa humana, em razão das falhas assistenciais provocadas pela omissão do estado, busca-se identificar o que prevalecido no entendimento do Tribunal Regional Federal de Rondônia, nas decisões sobre a temática.
Portanto, destes questionamentos, deflagra a compreensão de que é necessário identificar na fundamentação das decisões exaradas pelo Poder Judiciário, quais princípios constitucionais têm prevalecido, para que se possa compreender melhor o evento e, a partir dessa análise, fundamentar a proposição de ações para os atores legitimados. Assim, o estudo empreendido objetiva gerar novos conhecimentos para aplicação prática, na construção dos elementos probatórios que fundamentam as ações civis públicas propostas pelo Coren-RO, caracterizando-se como uma pesquisa aplicada.
O procedimento adotado foi a análise documental indireta. Lakatos e Marconi,(5) corrobora que a pesquisa documental tem como fonte de coleta de dados apenas documentos, sendo estes as fontes primárias. No desenvolvimento do estudo, procurou-se explorar a análise sob uma abordagem quali-quantitativa. Acerca da técnica eleita, Minayo aduz que “Não existe um "continuum" entre "qualitativo-quantitativo", em que o primeiro termo seria o lugar da "intuição", da "exploração" e do "subjetivismo"; e o segundo representaria o espaço do científico, porque traduzido "objetivamente" e em "dados matemáticos".”.(6)
Nesse aspecto, Versa et al.(1) corrobora que, a insuficiência de profissionais na prestação assistencial, no âmbito hospitalar, repercute em riscos de novos agravos ou mortes, os quais poderiam ser evitados.
Como recorte institucional, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região foi o órgão decisor escolhido para as análises das decisões. Essa escolha se justifica pela competência desse tribunal em julgar as demandas jurisdicionais do Coren-RO. Faz-se necessário esclarecer que o Coren é órgão da Administração Pública indireta, autarquia federal, detentor da atribuição legal de fiscalizar o exercício da enfermagem, e parte legítima para propor ação civil pública, nos termos do art. 5º, da Lei No. 7.347/1985.(7)
A pesquisa foi desenvolvida em duas etapas. Na primeira buscou-se reunir decisões das ações civis públicas peticionadas pelo Coren-RO, cujo objeto relacionava-se com a provisão de profissionais de enfermagem para os hospitais públicos. Para isso, o critério de seleção das decisões considerou: (i) a relação de processos cujo polo ativo figurava o Coren-RO, relacionados ao objeto da pesquisa; (ii) os processos peticionados a partir de 2016, sobre a matéria em análise; (iii) as decisões interlocutórias de antecipação de tutela, as sentenças de mérito; (iv) os processos disponíveis no Processo Judicial Eletrônico (PJE).
Portanto, as buscas às decisões ocorreram pela consulta pública do PJE do TRF1, mediante à identificação do número do processo impetrados pelo Coren-RO. Foram excluídos da análise: (i) aqueles processos cujas decisões não constavam indexadas na plataforma; (ii) os processos que se referiam à instituições de saúde não hospitalares; (iii) os processos cujo objeto referia-se à instituições de saúde privadas ou filantrópicas.
A segunda etapa da pesquisa, iniciou-se após a constituição do corpus da pesquisa, com as decisões judiciais. Os julgados obtidos foram classificados quanto: (i) ao tipo de decisão; (ii) aos entes envolvidos; (iii) à área de jurisdição de cada decisão; (iv) ao deferimento ou indeferimento do pedido, (v) à categorização dos preceitos constitucionais que fundamentaram cada decisão, (vi) à prevalência dos princípios que fundamentaram as decisões.
Todas as íntegras das decisões judiciais selecionadas foram catalogadas e analisadas. A partir da leitura inicial das decisões foi elaborado um questionário, seguindo a classificação referida na metodologia para a segunda etapa da pesquisa. Os resultados obtidos em cada decisão foram catalogados no programa MS Excel.
A seleção do corpus da pesquisa foi iniciada a partir da informação das ações civis públicas peticionadas pelo Coren-RO. Os processos tramitam na Seção Judiciária de Porto Velho, e nas Subseções Judiciárias de Ji-Paraná e Vilhena, uma vez que o TRF1 dispõe em sua organização de apenas duas Subseções e Seção Judiciária, no Estado de Rondônia.
RESULTADOS
Da primeira seleção, resultaram trinta e cinco processos os quais tinham como objeto a provisão de profissionais de enfermagem para a prestação assistencial nos hospitais públicos de Rondônia. Todavia, verificou-se que parte dos processos não atendiam o período de corte da pesquisa (2016 a 2022), bem como, algumas decisões não estavam disponíveis no sítio de consulta pública do TRF1. Portanto, aplicadas as delimitações propostas na metodologia desse estudo, o corpus da pesquisa foi constituído por vinte e seis decisões, referentes a vinte e três processos.
As decisões estudadas contemplavam somente as categorias de enfermeiros e técnicos de enfermagem nos pedidos das ações, prevalecendo o requerimento de provisão de Enfermeiros, conforme pode-se observar na Figura 1.
Os indeferimentos dos pedidos ocorreram somente na Seção Judiciária de Porto Velho, equivalendo a 39% (trinta e nove por cento) das decisões prolatadas. Das decisões deferidas, 61% (sessenta e um por cento) da amostra, predominou as decisões deferidas parcialmente, em detrimento às defiridas totalmente (Figura 2), visto que prevaleceu dentre elas as decisões para a provisão de profissionais de enfermagem, contudo, sem o acolhimento do quantum de pessoal requerido.
DISCUSSÃO
Os dados apontados na observação quantitativa e qualitativa revelam a existência de distinções nas decisões entre as três jurisdições do TRF1 de Rondônia, de modo que a Seção Judiciária de Porto Velho denegou todos os pedidos de provisão de profissional de enfermagem, enquanto que nas Subseções ocorreram o deferimento, total ou parcial. Prevaleceu, sob a perspectiva global do Tribunal, o deferimento dos pedidos, embora com fundamentações distintas entre as Subseções. Por conseguinte, verifica-se que não há um padrão decisório nas decisões de primeira instância, acerca do pedido para a provisão de enfermeiros e técnicos de enfermagem, no Tribunal Federal em análise.
Em outro giro, identifica-se que a intelecção decisória dentro de uma mesma base territorial jurisdicional se mantém linear e homogênea, sustentando o mesmo contorno nas fundamentações. Em razão de inexistir, na consulta pública do TRF1, decisões de segunda instância dos processos que compuseram o corpus da pesquisa, não foi possível identificar o posicionamento do Tribunal – acórdãos monocráticos ou de colegiado – sobre as lides da matéria estudada. Assim, a discussão dos resultados constrói-se sobre o âmago das decisões de primeira instância.
Sob os contornos das três bases territoriais jurisdicionais de Rondônia, cujos posicionamentos na fundamentação mostraram-se distintos, e em alguns pontos, também controversos, verifica-se a prevalência do princípio da separação de poderes na Seção Judiciária de Porto Velho, a predominância do princípio da legalidade na Subseção Judiciária de Ji-Paraná, e transcendência do princípio do mínimo existencial na Subseção Judiciária de Vilhena.
Sob o aspecto global do TRF1, ante aos três princípios predominantes, prevalece o princípio da legalidade. Isso por ser a Subseção de Ji-Paraná, a que detém o maior quantum de decisões da amostra, o resultado global certamente seria outro se o numerário de decisões fosse superiores na Seção de Porto Velho, haja vista a homogeneidade das decisões por base territorial jurisdicional. Logo, a manifestação de um perfil global, abrangendo todo o TRF1, não se mostraria fidedigna, dada as distinções decisórias já manifestadas. A análise global, somente poderia ser demonstrada diante do pronunciamento do Tribunal em segunda instância.
Esse cenário gera uma insegurança jurídica, ao passo que, leva-se anos para a tramitação das ações em julgado, com vistas a decidir sobre um direito à saúde, pelo qual o indivíduo exposto ao risco não pode esperar. Cita-se como exemplo a ação referente ao Hospital Regional do sul do estado,(8) a qual tramita desde 2016, e somente em 2022 foi exarada a sentença na primeira instância, ocorrendo neste ínterim o deferimento de antecipação da tutela para a contratação de oitenta e um enfermeiros e trinta técnicos de enfermagem. E posteriormente sucedendo a mitigação dos efeitos dessa decisão liminar pela sentença. Decidiu-se pela manutenção de profissionais em quantidade suficiente, sem sustentar o numerário definitivo de pessoal.
Por outro lado, instituições com características semelhantes de insuficiência de profissionais, têm recebido decisão oposta, indeferindo o pedido de provisão de pessoal de enfermagem. Soma-se a esse fator, o lapso temporal decorrido até a resolução da lide, o qual repercute na modificação do cenário postulado. Dessa forma, ocorre tanto a redução ou aumento do quantitativo de profissionais – sendo mais habitual a redução – ou então a ampliação de serviços e consequentemente a necessidade de readequação da equipe existente, as quais, recorrentemente já laboram com um déficit profissional. Logo, todos esses precedentes geram uma incerteza acerca do que prevalecerá no litígio. Condição que reflete na insegurança da população assistida, bem como na sobrecarga de trabalho sobre os profissionais, ampliando-se o número de denúncias, de fiscalizações e de notificações, tornando-se um ciclo inesgotável, até a resolução da lide.
Em outro ângulo, indaga-se se existe um conflito de valores que expõe a risco o direito à vida e à saúde, em detrimento à separação de poderes e aos princípios orçamentários. Ante a isso, observa-se que cada juízo se manifestou de uma maneira. Na Subseção de Vilhena, prevaleceu a proteção ao núcleo valorativo da dignidade da pessoa humana, ao pautar a decisão em princípios que protegem o direito fundamental à saúde de modo a assegurar o mínimo possível para sua satisfação assistencial.
Contrapondo o posicionamento favorável da Subseção de Vilhena, acerca da intervenção do judiciário para assegurar o mínimo existencial, a Seção de Porto Velho, manifesta-se pela ótica de que os direitos sociais dependem de recursos econômicos para serem realizados. Assim, a intervenção do Judiciário nas questões políticas pode violar princípios constitucionais da separação dos poderes e da reserva possível.
Nessa intelecção, o princípio da separação de poderes, exprimiu maior destaque sob a luz do sopesamento de princípios, dado os contrastes hermenêuticos em sua aplicação. Na Subseção Judiciária de Vilhena, o princípio foi o fulcro para que o Poder Judiciário se manifestasse favorável à interferência nos atos de gestão do Poder Executivo, tendo como baliza a omissão estatal na garantia do mínimo existencial, com vistas à eficácia da norma constitucional. Enquanto que na Seção de Porto Velho, o princípio da separação de poderes foi consagrado em seu sentido mais restrito, de limitar qualquer interferência do Poder Judiciário no Poder Executivo que repercuta em reflexos econômicos, como responsabilização fiscal. Assim, todos os pedidos para provisão de profissional de enfermagem foram denegados, sob o fundamento do aludido princípio.
Ocorre que o princípio da separação de poderes foi consagrado na Constituição Federal de 1988, no artigo 2º, sob a aplicação do sistema de freios e contrapesos, de tal forma que, não só restringiu o poder absoluto e garantiu a liberdade, mas buscou instrumentar a efetiva realização do bem comum entre os indivíduos, por meio da harmonia entre poderes.(9)
Dadas as circunstâncias do caso concreto, a ingerência de um poder sobre o outro, em casos excepcionais, com vistas a promover as correções institucionais previstas na constituição, foi legitimado pela Carta Magna. Dito isso, tem-se que a aplicação do princípio da separação de poderes, pelo juízo de Vilhena, contemplou de forma mais precisa os preceitos constitucionais. Dessa forma, valeu-se do poder da jurisdição para corrigir a ineficiência das políticas públicas de saúde dos municípios, posto os riscos pelos quais os pacientes daquelas instituições estavam expostos. A exemplo, cita-se um dos setores de internação de um hospital do cone sul do estado,(8) no qual havia trinta pacientes para serem assistidos por apenas dois técnicos de enfermagem. Condição agravada pela inexistência de enfermeiros.
Opostamente, o juízo de Porto Velho tem desconsiderado os riscos aos quais os pacientes têm sido expostos, sobrepujando o princípio da separação de poderes. Condição identificada nos relatórios das decisões, das quais destaca-se o fato relatado na decisão referente a um hospital estadual no extremo norte do Estado.(10) Ainda que manifestadamente confirmada pela Direção do Hospital, que o “quadro de Enfermeiros não supre a demanda e cada dia fica mais difícil”, da decisão resultou o indeferimento do pedido, em razão do princípio de separação de poderes. Contrapondo o entendimento dominante dessa Sessão Judiciária, Barroso corrobora que “O Judiciário deverá intervir sempre que um direito fundamental – ou infraconstitucional – estiver sendo descumprido, especialmente se vulnerado o mínimo existencial de qualquer pessoa.”(11)
Em outro enfoque, a Subseção Judiciária de Ji-Paraná, decidindo sobre as mesmas matérias, engendrou as decisões sob a fundamentação da segurança ao paciente, mediante à aplicação do princípio da legalidade e da liberdade profissional, sem adentrar ao mérito da segregação de poderes, nos pedidos para provisão de pessoal.
Contudo, diante do pedido para a aplicação do quantum de profissionais definido por meio do cálculo de pessoal posto pela Resolução Cofen No. 543/2017,(12) a fundamentação ganhou novos contornos. A provisão do quantum de pessoal de enfermagem foi indeferida em todas as decisões, razão pela qual se deu o provimento parcial dos pedidos, nas lides que requeriam além da provisão de enfermeiros em todos os setores por tempo ininterrupto, pediam também a provisão de um numerário específico de profissionais. Nesses casos, houve o deferimento para o primeiro pedido, e o indeferimento para o segundo.
Nessa demanda, de provimento de numerário específico de profissionais, o posicionamento do Tribunal foi unânime para o não provimento. Contudo, pelo relatório constado no corpo das decisões, verificou-se a existência de uma única decisão que acolheu o quantitativo de pessoal requerido pelo Coren-RO. Trata-se da decisão liminar referente a um hospital do sul do Estado(8) (a decisão não compõe o corpus da pesquisa, todavia foi citada na sentença), o qual determinou a contratação de oitenta e um enfermeiros e trinta técnicos de enfermagem para o hospital. Entrementes, a decisão não foi sustentada na sentença, de modo que, o pronunciamento final do juízo foi pela manutenção de profissionais de enfermagem em quantidade suficiente para os serviços, mantendo a uniformidade de decisão com a Subseção de Judiciária de Ji-Paraná.
Posto esse fundamento, acerca do quantum de profissionais de enfermagem, verifica-se que as decisões se delineiam com expressões subjetivas, de difícil mensuração quanto ao seu cumprimento. Conquanto, o gestor deve garantir o suprimento de enfermeiros e/ou técnicos de enfermagem em quantidade suficiente. Questiona-se, o que seria suficiente? E como demonstrar a suficiência ou a insuficiência?
Embora verifique-se que a aplicação da Resolução Cofen No. 543/2017(12) na decisão para provisão do numerário de profissionais de enfermagem exigiria do gestor uma obrigação não postulada em lei, gerando afronta ao princípio da legalidade e da separação de poderes, em uma primeira análise. Observa-se em contraponto que busca-se um parâmetro para o cumprimento da lei 7.498/1986(13) a qual impõe limites ao exercício dos técnicos de enfermagem no desenvolvimento das suas atribuições.
A referida lei define que a execução dos serviços de enfermagem é privativa do enfermeiro, competindo aos técnicos de enfermagem assistir aos enfermeiros na prestação dos cuidados. Ocorre que, conforme se depreende dos relatórios do corpo das decisões, as instituições representadas mantêm os serviços de enfermagem sendo executados predominante por técnicos de enfermagem, e por vezes sem a presença do enfermeiro no setor, gerando flagrante descumprimento à lei do exercício profissional da enfermagem, e expondo a riscos os pacientes assistidos, haja vista a inexistência de profissional técnico e legalmente capacitado para desempenhar a assistência de forma segura.
Nessa perspectiva, verifica-se que os relatórios das decisões, bem como suas fundamentações, não colacionam informações acerca de possíveis fragilidades assistenciais ocorridas nos serviços em decorrência da insuficiência de profissionais. O relato identificado denota apenas uma análise de proporção de pacientes para profissional de enfermagem. É o caso do setor de internação que mantém trinta pacientes para apenas dois técnicos de enfermagem – hospital do cone sul do Estado.(8) Sobre essas informações é possível constituir algumas conjecturas de possibilidade de dano assistencial ao paciente, dada a sobrecarga sobre esses profissionais.
Assim, se o setor mantém pacientes com quadros clínicos instáveis, ou com maior dependência necessitando da realização do banho no leito, execução de curativos diários, monitoramento de sinais vitais contínuos, além da administração de medicação ou outros procedimentos privativos do enfermeiro, certamente haverá significativos prejuízos à vida desses pacientes. Entretanto, o relatório não demonstra quais fragilidades estão assentadas no caso. Dessa forma, a análise e o julgamento ganham contornos estritamente legalista, sob a luz do cumprimento ou descumprimento da lei, sem aferir o núcleo valorativo da dignidade humana, na prestação assistencial à saúde.
O direito à saúde, torna-se um direito de difícil aplicação. E as decisões prolatadas, no sentido de assegurar uma assistência digna e segura ao indivíduo, no seu período de adoecimento e risco de vida, como expressão da garantia do direito à saúde geram uma manifestação de intenções, ante à dificuldade de mensuração prática do cumprimento da decisão sobre o quantum de profissionais.
A análise dessa matéria ao abrigo do Código de Processo Civil de 2015, garante que haja a plena resolução do mérito, expressa juntamente com a atividade satisfativa da lide, nos termos do art. 4º, pelo qual se consagra o princípio da primazia da resolução do mérito.(14)
Compreende-se que a garantia de acesso aos resultados a que o processo se dirige, visa a produção da satisfação prática do direito substancial. Dessa forma, espera-se das decisões, clareza suficiente para se alcançar esse objetivo processual. Diante da complexidade desse tema de provisão de profissionais de saúde para os serviços públicos, o STF reconheceu sua repercussão geral, no Recurso Extraordinário , sob o Tema 698, o qual aguarda julgamento para que seja definido o limite de atuação do Poder Judiciário nas ações que versam sobre a contratação de servidores e de execução de obras que atendam o direito à saúde.(15)
O tema é complexo, dada sua relação com o desenvolvimento de políticas públicas da saúde, as quais requerem, por vezes, reformas estruturais, repercutindo em julgamentos germinados na colisão de valores que contrapõe, de um lado, o direito à vida e à saúde e, de outro, a separação de Poderes, sobre a baliza de princípios econômicos, como o princípio da reserva do possível.
CONCLUSÃO
A partir das decisões analisadas, verifica-se que enquanto não se consolidar uma uniformidade para as decisões sobre a mesma matéria, existirá uma insegurança jurídica nas lides de pleiteiam a provisão de profissionais de enfermagem para o suprimento das demandas assistenciais. Dessa forma, o direito à saúde daqueles que, em razão da sua condição hipossuficiente, dependem da prestação assistencial dos hospitais públicos, recebem uma assistência eivada de vícios e iatrogenias, em razão da sobrecarga dos profissionais de enfermagem, ou da inexistência de profissional técnico e legalmente qualificado para desemprenhar o cuidado.
Contribuições
Concepção e/ou desenho do estudo: Ramos LS; Coleta, análise e interpretação dos dados: Ramos LS; Redação e/ou revisão crítica do manuscrito: Ramos LS; Aprovação da versão final a ser publicada: Ramos LS.
REFERÊNCIAS
- Versa GL, Inoue KC, Nicola AL, Matsuda LM. Influência do dimensionamento da equipe de enfermagem na qualidade do cuidado ao paciente crítico. Texto Contexto Enferm. 2011;20(4):796-802.
- Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos em Saúde. Departamento de Ciência e Tecnologia. Síntese de evidências para políticas de saúde: judicialização da Saúde. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2020.
- Tribunal de Contas da União. Relatório sistêmico de fiscalização: saúde. Brasília (DF): Tribunal de Contas da União; 2014.
- Decreto No. 15.640, de 4 de janeiro de 2011. Declara estado de perigo iminente e de calamidade pública no setor hospitalar público do Estado de Rondônia, e dá outras providências. Diário Oficial do Estado de Rondônia. 5 jan 2011;28(1647):1.
- Marconi MA, Lakatos EM. Fundamentos de metodologia científica. 8a. ed. São Paulo: Atlas; 2017.
- Minayo MC. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 18a. ed. Petrópolis: Vozes; 2001.
- Lei No. 7.347, de 24 de julho de 1985. Disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio-ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico e dá outras providências. Diário Oficial da União. 25 jul 1985;Seç. 1:10649.
- Tribunal Regional Federal 1ª Região. Processo No. 0000245-94.2016.4.01.4103 [Internet]. Data da decisão: 21 nov 2022 [cited 2022 Nov 22]. Available from: https://processual.trf1.jus.br/consultaProcessual/processo.php?proc=1298820164014103&secao=VHA
- Sarlet IW, Marinoni LG, Mitidiero D. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva; 2021.
- Tribunal Regional Federal 1ª Região. Processo No. 1008854-82.2021.4.01.4100 [Internet]. Data da decisão: 20 jul 2021 [cited 2022 Nov 10]. Available from:
- Barroso LR. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Jurisp Mineira. 2009;60(188):29-60.
- Conselho Federal de Enfermagem. Resolução COFEN No. 543/2017, de 18 de abril de 2017. Atualiza e estabelece parâmetros para o Dimensionamento do Quadro de Profissionais de Enfermagem nos serviços/locais em que são realizadas atividades de enfermagem. Brasília (DF): Conselho Federal de Enfermagem; 2017.
- Lei No. 7.498, de 25 de junho de 1986. Dispõe sobre a regulamentação do exercício da enfermagem, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 26 jun 1986;Seç. 1:1.
- Lei No. 13.105, de 16 de março de 2015. Institui o Código de Processo Civil. Diário Oficial da União. 17 mar 2015;Seç. 1:1.
- Supremo Tribunal Federal. RE 684.612: Recurso Extraordinário de repercussão geral [Internet]. Plenário. Relator: Min. Ricardo Lewandowski. Data de Julgamento: 07 fev 2014. Data de Publicação: 06 jun 2014 [cited 2022 Aug 25]. Available from: https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/tema.asp?num=698
Veja Também
O valor da independência da OAB para a Justiça e para a Sociedade
Liderança que acolhe e fortalece: O compromisso de Márcio Nogueira com a Advocacia e com as Mulheres
Não existe democracia sem a participação feminina
Em prática abusiva Porto Velho Shopping aumentou em 40% a tarifa de estacionamento em 10 meses