O que as coronafests nos falam sobre nós?
Talvez mais do que a saúde, a doença é algo que nos une a todos. A literatura no campo da saúde, por exemplo, deixa claro como, no começo da República, a noção de uma saúde pública foi utilizada para formar uma identidade brasileira: a visão de que, não importa o quanto eu trabalhe e cuide de minha família, se meu vizinho não fizer o mesmo, é na minha casa que vem o mosquito trazendo a dengue, ou o vibrião trazendo a cólera.
A saúde é, em algum sentido, pública, porque a doença é – e essa noção reforça a cola que nos une enquanto comunidade – palavra em cuja origem, communitas, está a ideia de que compartilhamos algo, para o bem, ou para o mal. E é essa comunidade, a nossa communitas que colocamos em risco quando fazemos algo sem pensar no grupo, como um todo.
O coronafest põe em xeque, de várias formas, essa noção de que somos todos parte de um grande grupo social. Em tempos de selfies, individualismo e egolatria exacerbados, o grupo fica em segundo plano. Mas a doença, mesmo sem aparecer naquela foto curtida centenas de vezes, está lá, para nos lembrar que não somos sós. O vírus, sorrateiro, recorda-nos a todo o tempo que somos parte de um todo maior do que nós mesmos nos damos conta. Somos parte de uma comunidade que inclui não apenas quem está à nossa volta, dançando, bebendo ou conversando, mas a família que deixamos em casa, as pessoas que compartilham conosco os elevadores e ônibus, e aquelas, que trabalham conosco. Nos espaços públicos ou privados somos, sempre, parte de algo que nos imprime identidade. O vírus nos lembra isso.
É importante, aliás, deixar isso claro: um dos grandes erros que se pode cometer, neste momento, é se politizar uma doença. Há discussões politicamente saudáveis. Por exemplo, uma das formas eficazes de se combater o Aedes aegipti é pelo saneamento básico, pois quem tem água nas torneiras não precisa manter água parada em casa – quem de nós aqui, em Rondônia, nunca precisou guardar água da chuva pois um cano se rompeu ou, simplesmente, a água não veio no dia certo? Mas o Aedes, como a COVID-19 não escolhe suas vítimas pela bandeira do partido, ou pela religião. Ele, o vírus, nos vê como o que somos: organismos, partes de uma sociedade de pessoas as quais, independentemente de cor, raça, crença ou partidos, dependem uns dos outros. O vírus nos lembra como somos frágeis ao agirmos como se não fossemos parte de algo maior e, fazendo isso, colocamos o grupo em risco.
O coronafest nos lembra não apenas que somos parte de uma comunidade de pessoas extremamente dependentes umas das outras e que necessitam, urgente, sair de suas bolhas (reais ou imaginárias) para assumir responsabilidades. Mais que decisões altruístas, ou mais do que caráter e o mínimo de decência e humanidade, essas questões tomam outra proporção em tempos de epidemia. Não se pode, em nome de uma pretensa diversão momentânea, expor a vida de outras pessoas a riscos que elas não sabem que correram.
Isso implica em aceitar a ação de agentes públicos a fim de tentar, de alguma maneira, resguardar o grupo, apesar do que essas pessoas, agindo egoisticamente, fizeram.
A primeira dessas ações é agir com o máximo de transparência possível. Isso significa expor, sim, essas pessoas, onde a festa foi realizada e/ou o máximo de informações possíveis. Não se trata de humilha-las ou execrá-las, publicamente. O episódio do senhor Aparecido Lopes, taxista na rodoviária de Porto Velho foi um exemplo desse tipo de transparência: quem tivesse tido contato com ele, procurasse o sistema de saúde. Essa ação foi feita de forma bastante acertada e precisa se repetir.
Isso possui uma implicação: transparência na comunicação dá à população a sensação de que algo está sendo feito e isso diminui o pânico. A notícia de que uma festa, sabe-se Deus onde, sabe-se lá com quem, foi responsável por praticamente dobrar o número de casos registrados da doença em poucos dias é algo grave e a maneira pela qual a comunidade é informada não pode ser menosprezada. Caso os órgãos de saúde não assumam esse papel, caberá aos boatos se espalharem pelas redes sociais e aplicativos de mensagem a tal ponto que, logo, os cidadãos e cidadãs deixarão de acreditar nas autoridades.
Uma segunda ação deve se dar, justamente, nesse nível legal. Cabe ao poder público buscar identificar os responsáveis pelas festas que vem ocorrendo na cidade e puni-los, exemplarmente e às claras. Não se trata, novamente, de um linchamento público mas, ao contrário, de mostrar à população que o poder público realmente faz valer as leis que ele próprio estabelece – e que a lei vale para todas e todos. Trata-se de recuperar a credibilidade e de transformar em ações as palavras enfáticas reproduzidas à exaustão em lives dos políticos em suas redes sociais. Afinal, com que ânimo a população segue as medidas de isolamento social, pondo às vezes a subsistência de sua família em risco enquanto outros, de forma cínica, mantêm uma rotina de festas.
Finalmente cabe, ao poder público, recuperar o sentido por trás de tudo isso. As ações de educação em saúde devem ser feitas com tanto cuidado quanto tem sido feitas as ações de vigilância epidemiológica, para além do clima de polaridade política do país. Rondônia é, de várias formas, um reflexo das arenas ideológicas brasileiras, tendo um governador de Estado que, para ou bem ou para o mal, é aliado e amigo do presidente da República. Entretanto é ele, o Governador e são eles, os Prefeitos, que estão na linha de frente contra a COVID-19 em nosso Estado e em nossas cidades. Cabem a eles zelarem primeiramente pelo bem-estar e pela saúde de sua população, eleitores deles ou não, por dever legal e moral.
Entendam: são as nossas famílias – incluindo as famílias de vocês, políticos – que ficarão sem respiradores caso não consigamos conter a curva de contágio; são as nossas famílias – incluindo das de vocês, novamente – que serão enterradas em caixões lacrados em nossos cemitérios, sem direito a uma despedida apropriada caso percamos essa batalha; são as nossas famílias – e, adivinhem só, as de vocês também – que podem ficar doentes por coronafests, isolamento social elástico e falta de fiscalização.
Nós, como comunidade, podemos vencer o vírus. Mas, antes, precisamos entender que essa é a única forma de isso acontecer: assumindo responsabilidades não só pelas nossas próprias ações, quanto pelas dos outros. Não tem jeitinho, não tem escapadinha, não tem cervejinha, festinha ou churrasquinho. Não agora. Se não por você, pela sua família, pela do seu vizinho, pelas dos seus amigos. Compartilhe responsabilidade, não o vírus.
* O autor é antropólogo, professor do Departamento de Ciências Sociais na UNIR, em Porto Velho. É Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília, com pós-doutorado pela Brown University (EUA)
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