Rondônia, 22 de novembro de 2024
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O que significa ser Humano em tempos de pandemia e redes sociais?

Nessas décadas, como professor de Antropologia, tenho ensinado aos meus alunos e alunas coisas interessantes, sobre como termos polegares e indicadores opostos nos possibilitou, como espécie, segurarmos ferramentas – desde um martelo e uma flecha, até volantes e canetas – e evoluirmos nosso cérebro. Também passamos longas horas discutindo, em sala de aula, a relação entre o desenvolvimento do nosso córtex e a linguagem... sempre temos aqueles debates sobre “nosso cérebro é desenvolvido porque temos cultura, ou temos cultura porque nosso cérebro é desenvolvido”? O que a ciência nos informa é que nos tornamos o que somos há mais ou menos duzentos mil anos. Desde então desenvolvemos a escrita, construímos cidades, fomos à Lua e inventamos o pau de selfie.

Mas essa visão científica nos mostra como nos tornamos espécie: Homo sapiens, organismos biológicos. Isso não explica como nos tornamos “humanos”... Havermos descido da árvore e nos separado dos neandertais não explica (ao menos não de uma forma simples...) o porquê de chorarmos vendo filmes, rirmos alto em casa vendo aquele meme no grupo da família, ou porque em uma fila qualquer, de repente, estamos conversando com as pessoas que sequer conhecemos. Mais que Homo sapiens, são essas pequenas coisas que nos tornam Humanos. Esse sentimento de que pertencemos a um “bando” talvez seja um instinto biológico e tem a ver com sobrevivência mas “humanidade” gradualmente deixou de ser um atributo evolutivo e se tornou um adjetivo: “fulano é humano”. Ué, não somos todos?
Não. Não somos todos humanos, ainda que sejamos Homo sapiens.

Deixamos de ser humanos quando tentamos lacrar em grupos de WhatsApp e postagens nas redes sociais, esquecendo que, numa pandemia, aquelas centenas de mortos em um dia têm nome e sobrenome. Cada um daqueles caixões empilhados nas cenas que temos visto nos noticiários, os sacos com corpos, as pessoas agonizando em leitos hospitalares, ambulâncias, ou em casa, são gente. São pessoas que tiveram família para amá-las, que tiveram sonhos, que foram filhos e filhas, pais e mães, avôs e avós; que fizeram amigos ao longo da vida, que também tinham alguém esperando por eles em casa. Aqueles corpos frequentavam igreja, passeavam com os netos, se preocupavam com os boletos e reclamavam do preço da carne.

Eram gente, assim como eu, assim como você, e hoje são ausência. São uma cama vazia em casa, são um armário repleto de roupas e lembranças com as quais a família precisa lidar. Deixaram de ser vida para se tornar silêncio. Mas não deixaram de ser humanos por isso.

Nas discordâncias políticas, no desejo do “lacre”, na piada postada no grupo ou nas redes sociais, a gente tem tanta vontade de estar certo, ou de provar nosso ponto de vista, que esquecemos disso... De que ali, naquelas imagens, de que nas linhas de frente dos hospitais e dos órgãos de segurança, de que nos leitos de UTI e nos caixões e sacos empilhados... ali estão humanos. Gente que há apenas duas ou três semanas estava em casa, no sofá, com a família. Gente que saiu das escolas de saúde querendo fazer o mundo melhor, gente que escolheu ser policial ou bombeiro para salvar vidas... Gente que corre risco por mim, por você. Gente que poderia ser eu, ou você. Gente. Gente como a gente. Humanos.

Política, ideologia, redes sociais... Tudo isso passa, e passa rápido. A vida, o cuidado com os outros, aquela ligação para aquele seu parente velhinho em casa, morrendo de medo de ficar doente... Isso fica. Esquecer disso é abrir mão da sua humanidade. Será que vale a pena?

Ser Homo sapiens não te faz Humano. O que te faz Humano é a capacidade de se colocar no lugar do outro. Sem isso somos apenas macacos sem pelos em busca de likes e lacres.

* Estêvão Rafael Fernandes é Antropólogo e professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Rondônia. Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília e Pós-Doutor pela Brown University (EUA)

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