O uso do cachimbo entorta a boca
A Assembleia Legislativa do Estado de Rondônia promulgou a lei 5313, em 18 de janeiro passado.
Nesta lei a unanimidade dos deputados estaduais houve por bem inserir em programa de recuperação de dívidas as de categoria não tributária, nas quais o cidadão seja devedor, estando elas judicializadas, ou não, transitadas em julgado inclusive, inserindo multas punitivas como passíveis de redução em seus valores, sendo forma de incentivo à liquidação de tais débitos, de sorte a proporcionar incremento de arrecadação, num momento de extrema dificuldade que está atravessando a humanidade.
Os REFIS e REFAZ já estão incorporados aos procedimentos fiscais, ou seja, todo o devedor de impostos, com boa frequência é assistido por estes programas, que tem duplo viés:
a) incrementar receitas que estavam praticamente perdidas;
b) reintegrar o contribuinte ao sistema e todas as consequências daí advindas, com geração de riqueza e criação de empregos.
Com relação aos REFAZ jamais houve qualquer manifestação de contrariedade por quem quer que seja.
No entanto, quando o parlamento resolve estender idêntico tratamento a outros devedores, que passam pelas mesmas circunstâncias, devedores da fazenda pública, dívida de créditos não tributários, ocorre uma reação forte por parte de órgãos fiscalizadores.
Repise-se que a Assembleia Legislativa é a caixa de ressonância legítima dos anseios da cidadania. Além de fiscalizar o Executivo e contribuir com ele, também recebe o cidadão e o ouve, deduzindo em projetos de lei as situações aflitivas que segmentos da sociedade lhe passam, razão pela qual o parlamento merece tratamento respeitoso.
Então, publicada a lei que estendeu a devedores do Estado, a possibilidade de pagar dívidas não tributárias com descontos no principal, juros e multas, de pronto foi arguida ação de inconstitucionalidade da mesma, deixando a impressão que os legisladores estaduais cometeram grave equívoco e que ele deve ser de imediato corrigido.
Um primeiro comentário se impõe.
Quando o programa de recuperação de créditos se volta aos contribuintes do ICMS, concedendo agradáveis reduções de valores no principal, multas e juros, o silêncio de todos transmite a impressão que este é um procedimento correto.
Ora, bem analisada esta situação, constata-se que o devedor do ICMS, sem entrar no mérito do porquê haver sonegado o imposto, na verdade está cometendo um tipo de apropriação indébita.
Isto porque quem paga o tributo é o consumidor. O ICMS é incluído no valor da mercadoria e o comerciante, ou fornecedor de serviços recebe o que lhe cabe, devendo recolher ao fisco a importância consignada na nota fiscal como tributo. Não o fazendo, está a se apropriar de dinheiro do contribuinte e da fazenda pública.
Pode-se afirmar, pois, que não recolher o ICMS, que foi pago pelo consumidor, seja um grave dano ao erário.
Como se trata de um tributo praticado por todos os Estados da Federação, para implantar um REFAZ é necessária autorização do Conselho Nacional de Política Fazendária – CONFAZ – como mecanismo inibidor da chamada guerra fiscal que os Estados travam, em busca de contribuintes.
Já para reduzir multas e juros de débitos não tributários é absolutamente desnecessária a autorização do CONFAZ, eis que se trata de dívidas não oriundas de tributos.
Acerca da cogitação de se estimular, mediante reduções, o recolhimento de condenações judiciais ou administrativas, tanto do principal como de juros e multas, exija estudo do impacto orçamentário/financeiro, por se tratar de renúncia de receitas, é de se considerar que tal entendimento está severamente equivocado.
Para espancar este mau posicionamento jurídico, transcreve-se um artigo, de autoria de José Pedro Fernandes Guerra de Oliveira, que aborda o tema e não deixa a menor margem de dúvida, lembrando da enorme diferença entre tributo e não tributo:
“Será que o Refis, e outros programas de parcelamento incentivado que existem em nossa Federação, se caracterizam como um mecanismo de renúncia de receita? E qual seria a importância prática dessa distinção para fins do Orçamento Público em relação aos programas de políticas governamentais para os entes da federação?O Refis ou Parcelamento Incentivado, em linhas gerais, constitui um incentivo para os contribuintes quitarem seus débitos, com o resultado esperado de aumentar a receita da Administração para fazer frente as despesas fixadas.
Não há dúvida que esse conjunto de Refis se insere na política econômica dos governos federal, estadual e municipal de desonerações incentivadas, visando reduzir o estoque de seus créditos e obter mais receita para fazer frente ao superávit primário para traçar as metas estabelecidas pelo governo.
O referido programa é utilizado constantemente pela União, Estados e municípios para tentarem cumprir as metas fiscais traçadas pelas Leis Orçamentárias, o que tem aumentado de maneira expressiva o número de arrecadação de débitos tributários e não tributários.
O conceito de renúncia de receita foi introduzido pelo direito americano em 1967, tendo como base conceitual o conceito de “taxexpenditure”, o qual pode ser traduzido como gasto tributário.
Tal conceito foi introduzido pela Constituição de 1988, ao definir em seu artigo 165, parágrafo 6º, que “o projeto de lei orçamentária será acompanhado de demonstrativo regionalizado do efeito, sobre as receitas e despesas, decorrente de isenções, anistias, remissões, subsídios e benefícios de natureza financeira, tributária e creditícia”.
Este conceito foi utilizado pela Lei de Responsabilidade Fiscal em seu artigo 14, ao definir que “a renúncia compreende anistia, remissão, subsídio, crédito presumido, concessão de isenção fiscal.
Portanto, o conceito de renúncia de receita está diretamente ligado ao conceito de benefício fiscal, na medida em que o primeiro conceito é tão somente o enunciado quantitativo dos efeitos financeiros acarretados pelo segundo. Tal conceito exclui a anistia de juros e multas constantes no Refis, uma vez que não prevê qualquer redução de tributos, mas apenas de juros e multa, os quais não são enquadrados no conceito de benefício fiscal.
Destacamos também que a Lei de Responsabilidade Fiscal trata do equilíbrio financeiro do ano corrente, em outras palavras, procura fornecer ferramentas para que não ocorra o chamado desequilíbrio fiscal em determinado exercício financeiro.
Do conceito constitucional e da lei complementar pode-se extrair que juridicamente o artigo 14 da Lei Complementar nº 101/00 (Lei de Responsabilidade Fiscal) em que diz:
“Art. 14. A concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita deverá estar acompanhada de estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva iniciar sua vigência e nos dois seguintes, atender ao disposto na lei de diretrizes orçamentárias...” (grifos nossos) deixa margem a uma interpretação mais genérica onde se entende que se houver concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária obrigatoriamente deva existir a estimativa de impacto orçamentário, no entendo podemos fazer 3 observações quanto ao texto da Lei:
I – A parte onde diz “... da qual decorra renúncia de receita” impõe uma condição de que se houver algum prejuízo ao ano corrente deve existir o tal estudo de impacto, e se não houver não necessita.
II – Quanto a necessidade da estimativa de impacto prevista na Lei de Diretrizes Orçamentárias no que consta parte onde diz “... em que deva iniciar sua vigência...” é algo condicionado ao exercício financeiro da LDO. Como o Programa de Parcelamento Incentivado trata dos débitos dos exercícios anteriores e não do ano corrente, não há que falar em estimativa de impacto, haja vista o Programa versa sobre débitos já inscritos em Dívida Ativa dos exercícios passados. Do mesmo modo o artigo 165 da CF/88 em seu § 6º prevê que a LDO deverá constar o efeito gerado nas receitas decorrentes de isenções, anistias, remissões e etc., entretanto tal ato só se fundamenta em caso de previsão negativa da receita o que não acontece no presente caso.
III – O § 1º do referido artigo salienta que renúncia compreende: anistia, remissão, subsídio ou isenção de caráter não geral que implique redução discriminada de tributos, ora isso não ocorre no presente caso, pois o programa trata apenas da redução das chamadas penalidades pecuniárias (juros e multa) que não se confunde com o tributo propriamente dito. Portanto não haver disposição de receita tributária por parte do Município. É importante ressaltar também que o benefício é de caráter geral, ou seja, não faz discriminação.
Através de métodos de interpretação, chega-se a conclusão que o referido artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal prescreve um evento futuro e incerto, vez que o legislador ao colocar no “caput” a palavra decorra frisa que caso não ocorra à chamada renúncia de receita, não há o que se falar em estudo de impacto financeiro nesta hipótese.
Além disso, a multa e os juros têm caráter de sansão sendo assim não devendo ser confundido com o tributo devido, nessa linha o próprio Código Tributário Nacional nos dá o conceito de tributo em seu artigo 3º em que diz “Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.”
O tributo e a penalidade (multa e juros) pecuniária são inconfundíveis, porque aquele deriva da incidência do poder tributário do Estado, já a segunda tem o condão de resguardar a validade da ordem jurídica por meio coercitivo, ou seja, a sanção propriamente dita.
Conclui-se que o chamado Refis tem natureza de transação tributária e não viola o artigo 165 da Carta Magna e o artigo 14 da Lei Complementar nº 101/2000, onde a lei pode facultar, nas condições que estabeleça, aos sujeitos ativo e passivo da obrigação tributária celebrar um acordo que, mediante concessões mútuas, importe em terminação de litígio e consequente extinção de crédito tributário.
Assim, a natureza jurídica das penalidades inscritas em dívida ativa, por não ensejarem ao município a expectativa de executar sua política pública, em vista da incerteza de seu recebimento, não pode ser considerada o PI uma renúncia de receita, sendo certo que parte deste valor não será objeto de pagamento.
A anistia, de modo semelhante à remissão, consiste no perdão do pagamento de importância pecuniária decorrente da incidência de uma norma sancionatória relativa a questões tributárias.
Nesse sentido, a norma de anistia possui a natureza de perdão de dívida, sendo dotada da mesma estrutura da norma de remissão, tendo como único traço distintivo o fato de que a obrigação perdoada não se origina da incidência de regra matriz tributária, mas sim de uma norma sancionatória.
Quanto à forma, tem-se que a anistia pode ser geral, limitada ou condicional. A geral é concedida a todos quantos se encontrem na mesma situação, sem qualquer condição. Nesse caso, o seu reconhecimento dependerá de prova do preenchimento das condições e do cumprimento dos requisitos previstos em lei para a sua concessão.
Nesse sentido, como visto acima, a relação do instituto da anistia com o do gasto tributário também pode ser questionada, uma vez que o caput do artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal restringe o conceito para a “concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária”, não se aplicando aos benefícios relativos às penalidades. Assim, não há uma norma de referência quanto às normas que descrevem penalidades, na medida em que elas não objetivam, em princípio, a arrecadação de receitas.
Por fim, cumpre ressaltar que o STJ já reconheceu os Refis ou PPI´s como uma espécie de transação em pelo menos dois julgados (Relator Ministro Castro Meira, REsp. 739.037/RS; e Relatora Ministra Eliana Calmon, REsp 499.090/SC).
Conclui-se, portanto que o Parcelamento Incentivado se enquadra no conceito jurídico de transação, e não de benefício fiscal, uma vez que este implica na redução direta ou indireta de tributos, já o Refis não visa esse objetivo motivo pelo qual não acarreta renúncia de receita nos termos da Constituição Federal e da Lei de Responsabilidade Fiscal.”
Então, com esses elementos esclarecedores fica evidenciado que falar em renúncia de receitas e necessidade de estudo de impacto, com oferta de alternativa para compensar o valor renunciado, é uma grande heresia jurídica, mormente e se tratando de débitos não tributários.
Atenta contra inteligência do homem médio a alegação contida na arguição de inconstitucionalidade de que estender, isonomicamente como o que é feito aos devedores de ICMS, aos devedores de débitos não tributários, redução de encargos e até do principal seja fator de aumento de despesas.
Qual a despesa que aumenta com isto?
Finalmente, chama a atenção e clama por um olhar mais atento, haver o arguente da suposta inconstitucionalidade invocado em seu documento aspectos principiológicos, como razoabilidade e proporcionalidade, citando um trecho de Celso Antônio Bandeira de Mello, que virou um jargão jurídico, ao dizer que “violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer” e ter esquecido o princípio constitucional, grafado na Constituição Federal, artigo 37, que é o da impessoalidade.
Vale dizer, se o legislador pode atender ao devedor do ICMS, porque não pode voltar os olhos a outros devedores, oferecendo-lhes as mesmas condições para a quitação de uma dívida para com o Estado.
Tudo o que foi escrito presta-se a confirmar o título deste texto.
Encerra-se transcrevendo trecho e um artigo o Ministro Aposentado do Supremo Tribunal Federal, Eros Grau, que com sua vasta cultura jurídica diz:
“Por conta disso, tenho insistido no fato de que tenho medo dos juízes. Em especial dos juízes dos nossos tribunais, que insistem em substituir o controle de constitucionalidade por controles de outra espécie, quais os da proporcionalidade e razoabilidade das leis e da ponderação entre princípios. Enquanto a jurisprudência do STF estiver fundada nessa ponderação — isto é, na arbitrária formulação de juízos de valor —, a segurança jurídica estará sendo despedaçada!”
* Amadeu Guilherme Matzenbacher Machado é advogado, OAB/RO 4-B
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