A longa fila do SUS e a atuação do Ministério Público para aumentar a cobertura de saúde em Rondônia
Francisco das Chagas Dias de Azevedo, 68 anos, há cerca de dois anos na espera um atendimento com um cirurgião geral. Carlos dos Santos, 74 anos, há 3 meses usa uma sonda e aguarda um retorno com o cardiologista para ser encaminhado a procedimento cirúrgico. Francisco e Carlos fazem parte de uma longa fila virtual para atendimentos pelo Sistema Único de Saúde em Rondônia. Em Porto Velho, levantamento feito pelo Rondoniagora com a Secretaria Municipal de Saúde (Semusa) mostrava que em agosto mais de 5 mil pessoas, entre várias especialidades, estavam cadastradas no Sistema de Regulação esperando por exames ou consultas. No final de outubro, a fila de espera apenas por exames de imagem superam 7,5 mil.
Carlos dos Santos, de 74 anos, é morador de São Braz, no município de Manicoré (AM), e começou a sentir dificuldade e dores ao urinar. Com os filhos morando em Humaitá e Porto Velho, eles o chamaram para fazer alguns exames. Durante a viagem, que dura 36 horas, até a capital rondoniense, o idoso caiu no barco, bateu a cabeça e ficou desacordado, sendo levado a UTI por alguns dias.“Com isso, tivemos primeiro que fazer o tratamento da cabeça que ele bateu, para depois começarmos o tratamento da próstata. Foram vários dias dentro do João Paulo II. Os médicos, enfermeiros, pessoal da limpeza são ótimos naquele lugar, mas o hospital em si, é tudo enferrujado, quebrado, fio exposto, um caos. Mas meu pai se recuperou e nós demos início ao tratamento da próstata. Foi colocada a sonda e ele já está há mais de três meses com ela”, conta a filha Elba Rosa dos Santos.
Distante de casa, o idoso reclama do incômodo de usar a sonda diariamente, e diz: “agora não sei se consigo urinar sozinho. Estou esperando o cardiologista para ele dar o risco cirúrgico e nada até agora. Por mim já teria até ido embora para o sítio, mas minhas filhas não deixam”, conta.
Segundo Elba, o pai já foi atendido pelo urologista, mas não conseguiu o retorno com o cardiologista após realizar os exames e, com isso, não consegue marcar o procedimento cirúrgico.
Ao jornal, a filha relata a saga do pai no João Paulo II e a demora para conseguir o retorno ao cardiologista.
“Chamaram primeiro o urologista sem a resposta do cardiologista. Já foi no cardio, mas passou outros exames e não conseguiu voltar para o retorno. Já fui no posto e eles falam que a fila está enorme. E ele aqui, com a próstata aumentada, sonda e tem até medo de levantar. Mas, para a saúde de um modo geral, eles não consideram um caso grave, de urgência. E se estivesse tudo certinho (com o risco cirúrgico), encaminhando para a cirurgia, ele ficaria ainda um tempo, porque no Hospital falta até o soro. E o médico disse que não pode operar ninguém sem material”, afirma Elba.
Já a espera de Francisco das Chagas Dias de Azevedo, de 68 anos, é um pouco maior. O aposentado precisa operar uma hérnia na virilha e não consegue o atendimento para o cirurgião. “Consegui no Hospital Santa Marcelina, mas como já operei duas vezes nesse mesmo lugar, o médico disse que preciso de um procedimento que não faz lá e me encaminhou para o Hospital de Base. Os exames todos já venceram e não consegui atendimento de nada até agora. Como vou direto ao posto de saúde da 10 (Agenor de Carvalho), agora me encaminharam para o geriatra. Vou ver se ele me dá um outro encaminhamento. Mas no posto dizem que estou na fila para passar com o cirurgião”, afirma o idoso.
Como o paciente entra na fila do SUS
A Constituição Federal diz que saúde é direito de todos e é dever do Estado garantir a saúde, com acesso universal e igualitário às ações de proteção e recuperação. O Município é responsável pela atenção básica, com atendimentos de baixa complexidade, enquanto o Estado oferta os serviços de média e alta complexidade.
Quando paciente precisa de atendimento, ele segue até a Unidade Básica de Saúde (UBS), antigo posto de saúde, e procura o atendimento. Lá, ele consegue fazer vários atendimentos. Segundo a Semusa, os serviços de ultrassonografia e radiologia, as consultas em cirurgia vascular, oftalmologia e neurologia são as especialidades mais procuradas e são ofertadas por unidades do Estado e Município.
“A pessoa vai na unidade mais próxima dela, seja de casa, do trabalho. Antes era recomendado mais próximo do bairro dela. Lá, marca o clínico geral e as especialidades de consultas e exames. Nos casos em que precisa aguardar o atendimento, ele sai da sala do médico e vai até a regulação do posto de saúde e já marca o procedimento, podendo sair com dia e horário ou vai para casa esperar a ligação do próprio postinho onde ele foi atendido”, explica Carlos Daniel do Nascimento, gerente de regulação municipal da regional de Porto Velho.
A central de regulação de Porto Velho atende os municípios de Candeias do Jamari, Humaitá (AM), Nova Mamoré, Guajará-Mirim, Itapuã do Oeste e a Capital. Daniel destaca que, durante o atendimento, o médico é precisa informar todo o histórico do paciente. “O operador da sala de regulação coloca tudo no sistema e ele vai para uma fila virtual - para evitar que ele fique esperando na frente da unidade, de madrugada, para marcar. Quando é resolvida, a pessoa da própria unidade onde ele marcou, liga e avisa a data do procedimento”.
Após a inserção do sistema (SisReg), o médico regulador analisa critérios de classificação de risco e indicação clínica na guia de marcação. “Os nossos médicos só olham o que está escrito. Se o profissional escrever apenas urgente, todos são. As vezes o próprio paciente precisa pedir detalhes. E quem lança o que o médico escreve é um administrativo. Ele só transcreve para chegar ao outro médico”, esclarece Daniel.
Esperando o mesmo atendimento de Carlos dos Santos, com idade acima de 60 anos, existem cerca de 500 pacientes, segundo dados da Central de Regulação estadual. “Existe um teto de atendimento de determinado mês que é distribuído para a UBSs marcarem. O senhor Carlos é prioridade, por causa da idade, mas se chega um paciente, por exemplo, de 30 anos, com quadro de tuberculose, ele passa na frente. E é por isso que a gente não recomenda que seja informada a posição do paciente na fila, porque as vezes surgem outras prioridades e acaba entrando outro na frente de quem já está esperando”, afirma o gerente municipal.
Procedimentos mais procurados
Dados da Central de Regulação mostram que apenas para procedimentos de raio-X- existem 2,8 mil pessoas na espera. De um modo geral, os serviços de imagem são os mais procurados. Ao todo são mais de 12,5 mil procedimentos. “Isso não quer dizer que tenha essa mesma quantidade de pessoas, porque um mesmo paciente, pode ter mais de um pedido”, diz Carlos.
Entre as especialidades, oftalmologia existem mais de 4 mil para dois médicos, neurologia são cerca de 1,6 mil para um médico. “O Município atende algumas especialidades e o Estado o restante. Em relação ao neurologista, nós já tentamos contratar outro médico, mas não conseguimos ainda. Esse médico consegue atender 7 pacientes num plantão de seis horas. É pouco, mas ele é nosso orgulho, pois todos esperam para serem atendidos por ele, pelo tratamento humanizado que ele dá”, diz Leila Matos Jacob, diretora de regulação e distribuição da Semusa.
O que diz a Secretaria de Saúde para tentar reduzir a fila do SUS
O Rondoniagora tentou conversar com a secretária de Saúde de Porto Velho, Eliane Pasini, para saber quais ações o Município estava trabalhando, planejando para reduzir a espera, mas foi informada pela assessoria que ela não teria agenda para entrevistas. Segundo informações da Central de Regulação, existe uma negociação com os médicos para que sejam atendidos mais pacientes durante o plantão e ainda foi implantado o terceiro turno de atendimento nas UBSs Maurício Bustani e Castanheira. “Outra coisa que a gente pede, é que as pessoas que não precisam mais do atendimento, seja porque já conseguiu na rede privada, que retire o nome da lista de espera. Mesmo quando o servidor ligar, informando a data, é só ele avisar, que outra pessoa ocupará aquela vaga”, diz Leila.
O Jornal também tentou desde agosto deste ano conseguir dados e informações sobre a fila de espera do SUS. A assessoria, por diversas vezes respondeu que todas as informações estariam no sistema SisReg, que precisa de um login senha para consultas, normalmente exclusivo a servidores. A reportagem também tentou entrevista com o secretário, mas nas primeiras tentativas a assessoria informou que o secretário estava em viagem e depois não fomos mais atendidos.
Os procedimentos do Ministério Público
A falta de atendimento faz muitos pacientes buscarem as vias judiciais. Essa demanda chega a Promotoria da Saúde, em Porto Velho, onde a promotora de Justiça, Emilia Oiye, responsável pela 1º titularidade que corresponde, além da capital, os municípios de Itapuã do Oeste e Candeias do Jamari, já instaurou 410 procedimentos diversos. “Como aqui no MP atende todo tipo de demanda, o cidadão chega aqui, as vezes sem nem saber se está agendado. Outro dia teve um problema de uma mulher que tinha consulta agendada, mas não foi. Ela disse, não me ligaram. E o servidor coloca que a pessoa não foi localizada, ou porque trocou de celular, ou porque não atendeu a ligação ou o servidor colocar que avisou sem ter avisado. O Sisreg é um sistema bom, mas precisa ser melhor administrado. É um sistema do Ministério da Saúde”, explica a promotora.
Para ela, o atendimento em saúde evoluiu muito nos últimos dez anos, mas não pode aceitar qualquer tipo de retrocesso. É preciso ainda união entre Estado e Município para reduzir essa demanda e melhorar o atendimento na saúde. “O SisReg é um sistema bom, mas o servidor que cuida dessa regulação precisa estar atento a vários quesitos. Por exemplo: se eu tenho uma demanda de Rolim de Moura, isso está negociado. Então vou marcar o pessoal de lá nos primeiros 15 dias - oftalmologista, por exemplo -, porque o município que faz o transporte tenta encaixar tudo no mesmo período para evitar prejuízo”, afirma promotora destacando que é aqui na Capital onde médico regulador analisa os critérios de classificação e encaixa o paciente na fila.
“É saúde em si é um negócio muito complicado e precisa de muito esforço para resolver. É falta de médico, é a licitação que não deu certo, é a falta de insumos, é o médico que ficou doente e não tem outro para colocar no lugar. E tem ainda as demandas da Defensoria. Não é fácil. São várias janelas que tem que preencher. Oftalmologia por exemplo, temos 12 mil pessoas esperando. Ortopedia, chegavam a fazer mutirões. Por que é difícil. A pessoa que faz esse controle tem que ter uma visão macro”, diz a promotora.
OSS na Capital
Em recente entrevista ao Rondoniagora, o prefeito Hildon Chaves disse que “diminuiu muito a reclamação por saúde em Porto Velho. Elogios, você não vai encontrar em lugar nenhum do Brasil, isso é um problema nacional. O país assumiu a missão de universalização da saúde na CF de 1988 e a cada dia que passa a atribuem mais ônus para os municípios e a União se omite mais. E está difícil fechar essa conta”.
Sobre a expectativa de implantar as OSS, Hildon disse que houve uma reação negativa muito forte, então a opção foi por construir um caminho alternativo com os trabalhadores da saúde, mas avaliou que houve “uma falta de entendimento conceitual. Eu diria que ela não está descartada. Eu poderia na unidade de Jaci-Paraná, onde eu não tenho pessoal, fazer um projeto piloto. Isso não é uma coisa que você implanta do dia para a noite. Hoje nós temos um gasto de saúde em torno de 28%, quando obrigatório é de 15%. Essas OSS não acontecem rapidamente. Onde foi implantado é uma questão de 15 a 20 anos para fazer uma transição de um modelo desse, porque o pessoal estatutário continua, eles podem ou não trabalhar numa modelo desse. Houve uma reação negativa tão forte”.
Segundo a promotora Emília, o MP expediu uma recomendação para suspender a implantação das Organizações Sociais de Saúde (OSS).
“Primeiro a gente tem que saber que o SUS é público, e ele é de relevância pública. A Constituição Federal diz que a iniciativa privada pode atuar no SUS de maneira complementar. Mas não é: quero fazer oftalmologia vou lá e faço. É preciso provar a incapacidade do serviço de realizar. Não pode, por exemplo, para comodidade do gestor, entregar a administração da maternidade para iniciativa privada, alegando apenas que tem dificuldade para comprar insumos. É a incapacidade é da realização do serviço por fatores que não pode ultrapassar. Eu não posso entregar um serviço, que naturalmente eu estou fazendo porque eu quero tirar essa responsabilidade dos meus ombros”, esclarece Emília.
Ainda conforme a Promotoria da Saúde, existe uma carência de atendimento na atenção básica, que só consegue suprir cerca de 50% da demanda. “Mas falta acompanhamento do Agente Comunitário de Saúde. Tem que se montar estratégia para chegar ao morador. Por isso é interessante o ACS morar no bairro, porque já conhece a rotina”, diz a promotora falando que a maioria das equipes de saúde da família não aderiram a uma avaliação da atenção básica. “Porto Velho vai passar vergonha. A Unir é contratada para fazer a avaliação da atenção básica e a notícia que eu recebi é que a maioria das equipes não aderiu para fazer esse levantamento. Essa avaliação vai desde a existência e trabalho das pessoas. A equipe faz a autoavaliação, a população avalia e a equipe da Unir vai avaliar. E com isso a equipe ganharia um acréscimo”, relata a promotora destacando que na gestão passada o resultado dessa avaliação foi transforando em acréscimo nos rendimentos e talvez isso tenha desmotivado a adesão neste ano. “Mas isso não vem para aumentar o salário das pessoas, ele vem para melhorar o trabalho. E agora houve controvérsia. Ai não aderiram. E não avalia o seu território e gera um desconhecimento inclusive para o gestor”.
Descarte de sangue
“Isso chega a ser um crime. Quando tomamos conhecimento, nós fomos atrás para saber o que estava acontecendo. Descobrimos que o processo, que foi para a Superintendência de Licitações, estava cheio de erros. Se eu recebo um processo eivado de nulidade, eu tenho que chamar a pessoa e falar ou escrever que precisa recomeçar, porque eu não vou ficar tramitando um processo que eu sei que não vou dar resultado, porque isso é pior ainda. Você ficar enrolando para obter um resultado e até hoje, até hoje não houve a licitação dos kits laboratoriais para o município. E nós estamos com esse procedimento desde março de 2017, pedindo para licitar”, explica promotora.
Enquanto não licita, o Município passou a pegar carona em Atas de Registro de Preço. No entanto, a demanda só aumenta e o material que deveria durar quatro meses, chega a no máximo dois. “Mas a demanda continua e eu tenho a geladeira cheia para limpar. Passado o prazo de 10 a 30 dias (da coleta do material do paciente) eu tenho que descartar porque não serve mais. Se fizer, vai dar exame incompatível. É de ficar indignado mesmo com a falta de interesse do gestor em resolver esse problema. E não é difícil, porque ele vinha sendo realizado. Então, eu quem é tem now how para ajudar o município? O Estado. Chamamos os técnicos do laboratório, que são os mesmos técnicos do município. Então eu falei, gente vamos fazer uma força tarefa e ajudar o município a licitar. E eles conseguiram dizer o tipo de serviço que eles querem e fizeram o termo de referência para o equipamento que eles precisam e eles compram o kit. Semana passada eles conseguiram finalizar o processo administrativo para ser encaminhada para administração. Isso é um serviço muito disputado pelo mercado. Existem grandes empresas, multinacionais, esperando para ofertar o serviço”, conta a promotora.
União
Para o Ministério Público, a união entre Estado e Município é necessária para fazer uma nova proposta que, ao longo de quatro anos, vai aumentar a cobertura de saúde no Estado. “O Plano Municipal de Saúde é que vai decidir a gestão dos próximos anos. E o aumento da cobertura é um investimento que vai reduzir outras demandas e ao longo tempo vai aparecer o resultado”, diz a promotora
“Por mais que esteja ruim a saúde, ela evoluiu muito. Há 10 anos, postinho de saúde não tinha médico e está andando, o problema é que está andando muito devagar. A maior dificuldade nossa é aceitar o retrocesso. Isso não pode. Se eu tenha determinando serviço implantando a gente não pode admitir que ele seja extinto sob a alegação de que não tenha condições de ser gerido. Isso não né? A gente sempre tem que exigir a melhora do serviço”, finaliza a promotora.
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