Rondônia, 07 de dezembro de 2025
Especiais

Em Bom Futuro, o cooperativismo ressignifica o maior garimpo a céu aberto do mundo

De território marcado pela exploração e pelo trabalho infantil, Bom Futuro se tornou exemplo de cooperativismo, onde a mineração legal financia projetos sociais que transformam vidas e devolvem dignidade à comunidade.

Ana Maria, moradora de Bom Futuro / Arquivo pessoal

Em Bom Futuro, distrito de Ariquemes, o som das máquinas que um dia moveu o maior garimpo a céu aberto do mundo foi substituído por conversas, risadas e fios coloridos nas mãos de mulheres como Ana Maria.

Crocheteira desde menina, ela aprendeu a arte escondida. “Meu pai não queria que eu aprendesse. Dizia que isso não dava futuro. Mas o crochê sempre foi o que me manteve firme”, lembra.

Décadas depois, o mesmo crochê virou fonte de renda e ponte entre ela e outras mulheres do Projeto Pequeno Príncipe, criado para acolher famílias do antigo garimpo. “Tem muita mulher aqui que era calada, triste. Agora se reúne, conversa, cria. O crochê une as pessoas”, conta Ana, hoje uma das participantes mais ativas das oficinas.

Enquanto as mães se encontram em torno das linhas e cores, os filhos participam de oficinas de dança, canto e reforço escolar, atividades que mudaram a rotina do distrito. 

 “Antes, as crianças ficavam sem fazer nada. Aqui não temos estrutura, eles andavam de casa em casa o dia inteiro. Agora têm atividades, acompanhamento psicológico e aprendem a respeitar mais. A casa ficou mais leve.”

O projeto, mantido pelo Fundo da Infância e Adolescência (FIA) de Ariquemes e apoiado pelas cooperativas Coopersanta e Coopermetal, transformou a antiga paisagem do garimpo em um território de reconstrução social. É o início de uma transformação silenciosa, que nasce da união entre o cooperativismo, o poder público e a solidariedade.

Do garimpo ao compromisso coletivo

O Garimpo Bom Futuro, está localizado a cerca de 87 quilômetros de Ariquemes, é reconhecido como o maior garimpo a céu aberto do mundo e o principal produtor de cassiterita do Brasil. Tem aproximadamente 2.500 habitantes, onde reúne famílias de garimpeiros.

Vista aérea do Garimpo Bom Futuro, em Ariquemes / Arquivo Coopersanta / Reprodução de vídeo institucional

Nos anos 1980, o distrito era sinônimo de desordem. Eram cerca de dez mil pessoas vivendo em barracos de lona, amontoadas ao redor da cassiterita, o minério que parecia prometer riqueza, mas trouxe junto doenças, prostituição e trabalho infantil.

“Não havia controle de nada: nem da produção, nem das condições de vida”, recorda o geólogo Renato Muzzolon, um dos responsáveis por estruturar o modelo atual de exploração mineral. “O desafio foi mudar a cultura do garimpeiro. Mostrar que organização é sinônimo de dignidade. Hoje, temos um modelo único no Brasil uma jazida de acesso aberto, gerida por cooperativas, construída a partir de décadas de diálogo, aprendizado e responsabilidade.”

Foi apenas nos anos 1990 que uma série de instituições, entre elas a Empresa Brasileira de Estanho (EBESA), o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) e o Ministério Público, firmaram o Acordo de Ordenamento do Garimpo Bom Futuro, marco que deu origem ao cooperativismo mineral na região.

O pacto estabeleceu compromissos que mudaram o destino do distrito:

Escola Municipal Padre Ângelo Spadari fundada nos anos 90 / Arquivo Coopersanta - Projeto Bom Futuro

Em 2005, os direitos da jazida passaram para a Coopersanta, que consolidou um modelo de mineração sustentável e responsável. “Desde o início, entendemos que o desenvolvimento não se mede apenas por resultados financeiros, mas pelo impacto positivo na vida das pessoas”, explica Jaime Valentim Morgan, presidente da Coopersanta.

 “O Projeto Pequeno Príncipe nasceu dessa visão: devolver à comunidade o cuidado, o apoio e a esperança que sempre nos sustentaram.” Afirma Jaime. 

Três décadas depois do pacto que reorganizou o garimpo, Bom Futuro encontrou um novo equilíbrio entre produção e cidadania.

 “A Coopersanta nasceu da união de trabalhadores que acreditavam ser possível exercer a mineração de forma legal, sustentável e humana. Investir em ações sociais é uma forma de retribuir à sociedade o que ela nos oferece e garantir que o futuro das crianças de Bom Futuro seja diferente do passado”, afirma Jaime Valentim Morgan, presidente da Coopersanta e vice-presidente da Coopermetal.

Essas ações marcaram o início de uma nova etapa para o garimpo de cassiterita. O território que antes simbolizava exploração e improviso passou a representar um modelo pioneiro de cooperativismo mineral, um modelo que, ao longo de três décadas, evoluiu a partir de um único princípio: crescer sem deixar pessoas para trás.

Projeto Pequeno Príncipe

Sede do Projeto Pequeno Príncipe - Arquivo Projeto Pequeno Príncipe / FIA Ariquemes

A ideia do projeto começou como um pedido insistente de Maria Neuza, assistente social e gestora do FIA de Ariquemes. Desde 2012, ela visitava Bom Futuro com frequência e via o mesmo retrato: famílias vulneráveis, mães sem apoio, crianças crescendo sem espaço para brincar ou sonhar.

“O que mais me pediam era atendimento psicológico”, lembra. “Eu via crianças tristes, mulheres deprimidas, famílias desestruturadas. O sofrimento estava ali, na porta das casas, mas não havia rede de apoio.”

Foi dela a proposta que, anos depois, se tornaria realidade. Em fevereiro de 2024, a Prefeita Carla Redano lançou oficialmente o Projeto Pequeno Príncipe no distrito, uma parceria entre o FIA, as cooperativas Coopersanta e Coopermetal, e o Instituto Educacional e Social da Polícia Militar Mirim (7º BPM), responsável pela execução.

  Prefeita Carla Redano lança projeto "Pequeno Príncipe" no Distrito Bom Futuro

“Eu esperava algo que levaria seis meses, um ano. E, de repente, ouvi: ‘em dez dias estará pronto’”, conta Maria, sorrindo. “As cooperativas entraram com tudo: custearam parte da estrutura, ajudaram na montagem, e em menos de um mês o espaço estava mobiliado. Foi mágico. Sem elas, o projeto não existiria.”

Desde então, o espaço se tornou o principal ponto de apoio social da comunidade. Entre março e dezembro de 2024, foram 3.570 atendimentos diretos, 1.239 consultas psicológicas individuais e 2.331 atendimentos em grupo e rede, envolvendo o CRAS, o Conselho Tutelar e o Programa Criança Feliz. Mais de 80 mulheres foram capacitadas em oficinas de crochê e artesanato uma delas, Ana Maria.

Atividades de acolhimento psicológico - Arquivo Projeto Pequeno Príncipe / FIA Ariquemes

O projeto é financiado através do Fundo da Infância e do Adolescente (FIA), órgão municipal responsável por coordenar e apoiar ações voltadas à proteção de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade, é o único em Rondônia com equipe própria, sede estruturada e orçamento contínuo.

Em 2024, o fundo movimentou R$ 311 mil, e para 2025 tem previsão de R$ 292 mil em recursos. Sob a gestão de Maria Neuza, o FIA passou a unir esforços com as cooperativas Coopersanta e Coopermetal para transformar o sonho de um espaço de acolhimento em realidade.

Campanha Declare Seu Amor

Para a juíza Ana Valéria de Queiroz Santiago Zipparro, idealizadora da campanha “Declare Seu Amor” do Tribunal de Justiça de Rondônia, o impacto social de Bom Futuro é exemplo de como o cooperativismo pode se tornar instrumento de justiça.

“O Judiciário é um agente de transformação quando caminha ao lado da comunidade. A solidariedade é uma força que dá sentido humano ao desenvolvimento. Cada criança acolhida, cada família amparada, representa a justiça saindo do papel”, afirma.

Relatório Financeiro / Campanha Declare Seu Amor - Fonte: FIA Ariquemes 

A campanha permite que cidadãos e empresas destinem parte do Imposto de Renda ao FIA, fortalecendo iniciativas como o Pequeno Príncipe.  A arrecadação em Ariquemes saltou de R$52 mil em 2024 para R$147 mil em 2025, um aumento de mais de 180% nas doações destinadas ao fundo. Somando todas as fontes de recursos, doações, verbas municipais e emendas, o FIA mobilizou R$311 mil em 2024 e tem previsão de R$292 mil em 2025.

“Quando o poder público, as cooperativas e a sociedade civil caminham juntos, o resultado é mais que estatística, é vida transformada”, concluiu a magistrada.

O projeto além dos números 

Para Maria Neuza, o impacto vai além dos números. Ela lembra de um caso que marcou toda a equipe. Entre as oficinas, o acompanhamento psicológico e as rodas de conversa, surgem histórias de cura, de reencontro e de recomeço, como a de Bruno, um menino de dez anos.

Em 2025, ele viu a vida mudar depois de um acidente doméstico: o portão da casa caiu sobre o irmão mais novo, de dois anos. A mãe, em desespero, culpou o filho.  “Foi devastador. Essa mãe gritava que o menino tinha matado o irmão. A psicóloga cancelou todos os atendimentos do dia e foi até lá. Precisava acolher a dor, o luto e a culpa”, conta Maria.

 “O acolhimento foi imediato. Nosso papel era evitar que essa culpa virasse trauma. No fim da tarde, a mãe conseguiu abraçar o filho e entender que ele não teve culpa. Aquele abraço foi o começo de uma nova vida para os dois.”

Se o projeto não existisse, talvez essa história tivesse terminado de outra forma. Ali, o Pequeno Príncipe mostrou o que significa existir: ser presença quando a dor parece maior que a vida.

Do minério à consciência social

O modelo cooperativo implantado em Bom Futuro uniu mineração e responsabilidade social, uma combinação rara no setor.

O que começou como um pacto para ordenar o garimpo virou um movimento de transformação coletiva. Em 2025, a ONU declarou o Ano Internacional das Cooperativas, reconhecendo o papel dessas organizações na construção de um mundo mais justo, sustentável e inclusivo.

“Cuidar das pessoas é o que dá sentido à mineração. O cooperativismo é a prova de que é possível crescer sem explorar e produzir sem destruir”, explica o geólogo Renato Muzzolon, um dos responsáveis pela estruturação técnica do modelo.

A Coopersanta e a Coopermetal destinam parte de sua receita a projetos como o Pequeno Príncipe. Esses recursos garantem o funcionamento de oficinas, acompanhamento psicológico, reforço escolar, atividades esportivas e capacitações ações que, juntas, alcançaram mais de 3.500 atendimentos diretos em menos de um ano.

E se perguntarem como as cooperativas constroem um mundo melhor…

Lá em Bom Futuro, essa resposta está nas mãos calejadas que agora trançam fios e reconstroem histórias. O distrito, que um dia viveu do brilho efêmero do ouro, aprendeu com as cooperativas a lapidar outro tipo de riqueza: a que nasce do trabalho coletivo, da dignidade e do pertencimento.

Há três décadas, essa comunidade soma forças e reparte conquistas, provando que o verdadeiro desenvolvimento não vem da extração, mas da união.

“Bom Futuro talvez tenha nascido do garimpo, mas o que reluz dali agora é o resultado de um novo tipo de escavação, a que encontra nas pessoas o verdadeiro ouro”, resume Jaime Valentim Morgan, presidente da Coopersanta.

SIGA-NOS NO

Veja Também

Reconhecimento ao jornalismo de qualidade: jornalista do Rondoniagora vence duas categorias no prêmio da OCB

IBGE lança nova edição do Nomes no Brasil; veja ranking e consulte o seu

A era da mentira: como a desinformação transforma pessoas em conteúdos

Desafio dos professores é chamar atenção dos estudantes durante aulas