Rondônia, 22 de dezembro de 2024
Opinião

Professora é agredida por autista, registra BO e família é intimada

Os pais de uma adolescente autista compareceram nesta terça-feira (21) a Delegacia Especializada em Apuração de Atos Infracionais de Porto Velho, intimados para apresentar laudo médico e prestar declarações a respeito de ato de agressão narrado por uma professora da Escola Estadual (de ensino especial) Abnael Machado de Lima, mais conhecida como CENE.

A professora registrou Boletim de Ocorrência no dia 7 de maio, relatando ter sofrido agressão física por parte da aluna, que, segundo a servidora, lhe desferiu um soco na boca e dois na cabeça. A professora solicitou o Exame de Corpo Delito (ECD).

A aluna tem 12 anos, com Transtorno do Espectro Autista (TEA), nível de suporte 3, não oralizada (não fala). Também é diagnosticada com Transtorno Opositor Desafiador (TOD), que tem como principais características crises de raiva, irritabilidade e desafios às regras. É uma das principais comorbidades associadas a pessoas com TEA.

No caso do nível de 3 – antes conhecido como autismo severo -, a pessoa necessita de suporte o tempo todo, tem dificuldade em organizar os próprios pensamentos e sentimentos, e na fase da puberdade não consegue compreender suas reações emocionais às mudanças hormonais. A incapacidade de se comunicar com a fala também é fator de irritabilidade.

Frente aos desafios, os pais não têm muitas alternativas de tratamento. A maioria das clínicas em Porto Velho está aceitando trabalhar com intervenção presencial de pessoas com TEA somente até os 6 ou 8 anos de idade. Na pré-adolescência já começa o afunilamento no suporte.

Também faltam terapeutas com experiência para lidar com autista nessa fase, principalmente apresentando os chamados “comportamentos-problema”, com as crises de raiva e agressividade, que requerem uma intervenção especializada, com abordagens e técnicas terapêuticas específicas.

Umas das terapias mais indicadas são as que adotam a Análise do Comportamento Aplicada, conhecida como Ciência ABA. Porém, é quase impossível encontrar uma clínica em Rondônia com agenda aberta para disponibilizar as horas semanais necessárias para a intervenção comportamental, através do plano de saúde.

Há casos em que o paciente autista tem 2 ou 3 horas semanais de terapia ABA, quando o recomendado é uma intervenção intensiva, com 25 a 40 horas por semana, para um desenvolvimento amplo e maiores ganhos com o tratamento.

Já as famílias sem o privilégio de um plano de saúde – que é uma necessidade -, têm que contar com a sorte, à mercê do limitado atendimento especializado na rede pública, voltado ao autista, e precisam de paciência nas filas de espera por especialistas e terapias.

Talvez a professora desconhecesse essas realidades quando registrou a ocorrência numa delegacia especializada em atos infracionais, mas faltou transparência. Todos os dias a mãe perguntava, ao buscar a filha: “ela foi bem?”. E no dia 7 ela soube do ocorrido, mas lhe foi assegurado que estava tudo bem. 

A professora registrou o Boletim de Ocorrência às 12h50 do mesmo dia da agressão, e tivemos ciência somente uma semana depois, no dia 14, quando fomos chamados na escola para uma reunião, e fomos surpreendidos com o documento policial classificando nossa filha como “aluna supostamente em conflito com a lei”.

A professora viu razão para colocar o rótulo de agressora numa vítima, que não pode se defender, não pode apresentar sua própria versão, por não conseguir falar, e que não entende suas emoções, reações e impulsos, nem consegue administrá-los.

Mas, nessa história eu não apontaria culpa ou culpado. Em nenhum momento eu culpei a professora por não ter demonstrado manejo e experiência para lidar com minha filha, com seus diagnósticos e comportamentos desafiadores.

Ela narra no BO que o gatilho foi um objeto; que a aluna “lhe pediu uma tesoura”, e negou por ter ficado “com medo” da aluna “lhe machucar”. E eu também não a culpei por trabalhar com uma pessoa com deficiência dentro de uma sala trancada, com a presença de objeto de metal, cortante.

Ela também não tem culpa por não conhecer nossa filha, não saber que jamais ela feriu alguém com o uso de tesoura ou qualquer outro objeto, e que muitas vezes ela aponta para o objeto, ou pega, na intenção de recolocar no local ou na posição exata que estava.

Como eu disse à professora na reunião na escola: “não a julgo, não a condeno”, por entender que também não foi fácil para ela. Ninguém sonhou em ser professor para ser agredido por um aluno, mesmo sendo ele uma pessoa com deficiência neurológica.

E completei dizendo: “...Mas se a senhora me dissesse que se recusa a trabalhar com minha filha em sala de aula, eu até entenderia. Mas a senhora registrou um Boletim de Ocorrência, quando poderia resolver por via administrativa”.

Demorou três dias para o acesso ao Termo de Declarações, com detalhes do relato da professora no BO, porque só foi possível através de um advogado, por se tratar de segredo de justiça, por envolver uma menor. Fomos intimados, comparecemos à Delegacia com os laudos médicos, e o processo segue.

Se constasse os nossos nomes no documento policial, e não o nome da nossa filha, nos acusando de algum tipo de negligência, não nos causaria tanta tristeza e frustração, porque poderíamos nos defender dessa calúnia. Já ela, não pode apresentar sua versão, porque não consegue falar, nem entender seus comportamentos.

Trata-se de uma ocorrência com apenas uma narrativa – também, por não ter testemunhas, já que, conforme narrou a professora, ela estava sozinha, porque a professora auxiliar tinha saído da sala “para fazer o planejamento”. O cuidador também estava ausente.

“Comportamentos-problema”, como classificam os especialistas, são para serem resolvidos, com intervenções terapêuticas e pedagógicas. E tudo o que a família precisa é de apoio, mesmo quando falta preparo, manejo e experiência do profissional. Essa foi a nossa expectativa em relação à escola de ensino especial.

* Lucas Tatuí é pai atípico e jornalista

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